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A Gente Vimos – One Day at a Time (1ª e 2ª Temporada)

Netflix sabe que o maior potencial do serviço que oferece é o binge watching, que em bom português é quando você assiste doze horas seguidas de um seriado numa sentada só sem nem perceber. Para dar conta disso, investe na aquisição de enlatados que possam ser maratonados com facilidade, com foco especial nos sitcoms, os seriados de comédia.

O problema é – e quando sua audiência já viu tudo o que vale a pena no seu serviço, o que oferecer? Uma solução recente da empresa foi a realização de suas próprias produçõesOne Day at a Time (“Um Dia de Cada Vez” por aqui – muito embora ninguém use mais título nacional em tempos de Netflix) é um desses casos – com um agravante: ser um remake.

A série original, do final dos anos 70, contava os percalços de uma mãe divorciada, recém chegada de outra cidade, na criação de suas duas filhas adolescentes e foi bastante popular nos Estados Unidos durante o curso de suas nove temporadas. Porém, com exceção do estado civil da protagonista, a produção da Netflix (pelo menos na premissa) é completamente diferente.

One Day at a Time conta a história de uma mãe, também recém-divorciada, e sua família composta pelos dois filhos adolescentes e pela avó das crianças, vivendo num apartamento em Los Angeles e aborda temáticas atuais como direitos LGBTQracismodoença mental e – uma vez que a família é de origem cubana – a história recente da ilha de Fidel e sua população imigrante nos EUA.

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O roteiro é bem escrito e alguns personagens são realmente memoráveis, seja pela excelência, como a avó, Lydia, vivida pela sempre fantástica Rita Moreno (mais sobre ela depois), seja pelo carisma quase irritante – beirando o insuportável – no caso do zelador adicto-em-recuperação Schneider. Mas, no geral, a trama é recheada de estereótipos fracos, até inclusive onde a série tenta inovar.

Ambos os filhos encarnam tropes comuns em seriados: o menino, Alejandro, é o típico pré-adolescente popular em fase de crescimento, como já vimos inúmeras vezes em outras produções do tipo enquanto que a garota, Elena, é um novo típo de clichê – a ativista social. Já a mãe, Penelope, é a mãe esforçada que tenta conciliar trabalho, família e vida pessoal no dia-a-dia corrido da cidade grande.

Inclusive, as duas últimas são parte de um dos problemas da série.

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É perfeitamente compreensível que sitcoms como One Day at a Time abordem questões sensíveis da atualidade. Na verdade, na minha opinião,  isso não só é compreensível como também necessário é quando essas questões são de extrema importância para colocar em discussão temas relativos a problemas sociais contemporâneos como, por exemplo, as questões envolvendo a população LGBTQ, que ainda é marginalizada e invisibilizada – sobretudo pela grande mídia.

Então a escolha de colocar como uma das protagonistas uma adolescente em fase de descoberta da sua sexualidade é fundamental para questões de representatividade, além de poder com isso discutir itens como preconceitodiscriminação – inclusive, dentro da própria família. Mas não da forma como é feito no decorrer da temporada.

Embora o tema surja com uma naturalidade muito bem executada, a personagem no avançar da trama vira uma ativista chata, uma SJW  que “dá chilique por qualquer coisa”, sendo por isso ridicularizada pelos colegas de escola e pela própria família. Isso pode até ser um retrato fiel do que acaba acontecendo com jovens ativistas nos dias de hoje, mas o seriado coloca isso como alívio cômico e, para mim, passa a mensagem errada.

“É ok ser gay, só não seja chatx” – sei lá, achei escroto. Ainda mais porque é como se a série te enganasse: te entrega uma promessa de bom desenvolvimento de personagem pra trocar por risadas previsíveis e fáceis três episódios depois.

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Penelope, a mãe, é outro problema que me incomodou bastante. Para deixá-la mais interessante, a personagem não é “só” uma mãe solteira – ela também é veterana de guerra, tendo servido no Afeganistão sendo dispensada por um ferimento de combate. Isso, a princípio, dá um sabor diferente ao formato pois, através da personagem, a trama aborda pontos sensíveis como a vida pós-dispensa dos militares nos Estados Unidos, sucateada e envolta num sentimento ambíguo de gratidão pelo serviço prestado e abandono por parte do estado, tomando um contorno quase de crítica política severa…

… que desaparece três episódios depois e dá lugar a um patriotismo ingênuo e arrogante, bem típico dos EUA, beirando ao militarismo. Então, assim como no caso anterior, parece que os roteiristas não se decidem sobre qual visão abordar em questões sensíveis ou, pior, parecem estar tentando agradar o maior número de pessoas possível ao mesmo tempo.

Por fim o militarismo traz o último ponto que abaixa um pouco a nota do seriado, o sentimento patriótico de propaganda presente na obra interfere um pouco na representação da cultura cubana pelos personagens – o que é um dos pontos de destaque da premissa. A avó da família é uma refugiada, que chegou aos Estados Unidos ainda adolescente, fugindo do regime castrista, recém implantado em Cuba em meados do século passado.

A personagem, inclusive, é excepcional. Engraçada, mas também suficientemente desenvolvida em profundidade, Lydia representa na minha opinião os melhores momentos da série, e muito disso se deve a performance excepcional de Rita Moreno, que eu aprendi a amar desde a primeira vez que vi West Side History. Moreno, inclusive, é um importante expoente da cultura porto-riquenha em solo americano e um ícone cultural do século XX naquele país.

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Mas o talento da atriz não evita que o seriado, ao fazer uma escolha (quase óbvia) de lado do conflito na figura do regime do (também) ditador Fulgêncio Batista, caia num americanismo barato. É óbvio que os personagens (e, por consequência, os roteiristas) tem todo o direito de terem suas preferências políticas, mas a soma disso com o culto ao exército também presente na obra faz com que o resultado saia um tanto morno.

Mas é interessante ver questões como, por exemplo, a figura de Che Guevara serem abordadas por outra ótica que não a que estamos acostumados normalmente a receber, aqui, longe o suficiente na América do Sul.

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O resultado final é positivo mas o seriado, em suas duas temporadas, embora tenha me entretido me deixa um sabor de falcatrua. Primeiro por me prometer um remake de um clássico da tv americana e me entregar um seriado completamente diferente. Depois por anunciar uma visão contemporânea e contextualizada dos nossos problemas sociais atuais e acabar entregando um monte de piadinhas bobas ridicularizando essas mesmas questões.

Por fim, acaba sendo outro produto Netflix, que a gente faz maratona, se entretém, mas que se pensar demais nisso acaba vendo mais motivos pra esquecer do que para falar sobre.

Mas, veja pelo lado bom, pelo menos não é Fuller House!

 

One Day at a Time

13 episódios (por temporada)

Netflix

Nota: 7,78

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