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Da Janela do Quarto dos Fundos… #2

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Laerte antes da curva do sino
Saudações a todos, pelo menos por esta semana deu para cumprir a promessa de manter a coluna com a periodicidade semanal. Como eu havia prometido, neste segundo texto, vou tentar despertar seu interesse para um dos melhores quadrinistas do mundo em minha humilde opinião, o paulista Laerte.
Na coletânea Histórias Repentinas, de 2004, somos confrontados desde a abertura com o que de melhor e de pior são feitas todas as grandes obras da humanidade. A percepção que se desvela inexorável à nossa frente é de que há irresistíveis apelo e beleza em tudo que se produz com sentidos, emoções, coração, alma, dor, enfim, a tudo que convencionou-se chamar de condição humana.
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Sendo assim, Laerte já nos mostra a que veio no excelente conto literário – sim, você não leu errado, pra mim aquilo é literatura pura Crise, onde um arquétipo do “homem bem-sucedido made in mundo globalizado” é obrigado a ver-se consigo mesmo ao perceber-se nu em suas vergonhas. Para seu completo espanto e perplexidade, todos à sua volta parecem tratar com uma naturalidade digna do roteiro de absurdos usuais dos sonhos a falha (esquecer de se vestir da cintura pra baixo) considerada por ele mesmo imperdoável.
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Em A Insustentável Leveza do Ser – ironia finíssima com o belo livro homônimo de Milan Kundera –, o leitor é obrigado a refletir sobre o quanto são falíveis todas as nossas certezas, convicções, crenças e, dureza das durezas, até mesmo nossos modelos de verdade — nossas famílias. Não dá pra falar nada sem estragar o prazer da leitura, então, só posso lhe dizer: leia. Serão alguns dos 10 minutos mais bem gastos de sua vida. A elegância e a finesse que o autor usa são dignos dos melhores momentos da ironia e do nonsense tipicamente ingleses, porém a história é escrita em bom português. Nota 10 mesmo, sem exagero algum (para quem se liga mais nos desenhos que nos textos, perceba as resoluções que ele dá quando começa a revelar a verdadeira face da família, momentos de puro brilho criativo).
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Ainda seguindo essa linha de argumento, o quarto conto, Lingerie, é de um humor tão refinado, tão elaborado e ao mesmo tempo direto, que pode ser entendido por qualquer macho man latino-americano, do mais douto ao mais chucro, atolados que somos em nossa honra torta, brabeza e afirmação da própria força. O que acontece com o pobre do personagem é tão engraçado que não consigo evitar o riso enquanto escrevo estas mal traçadas linhas. E el Laertón mais uma vez reduz a pedacinhos nossas certezas, ao deixar bem claro a espessura do fio sobre o qual construímos tudo à nossa volta, inclusive a já citada honra. Um pequeno descuido e a ilusória certeza de que ninguém mais vai saber (e dá-lhe sarcasmo inteligente sobre a situação atual de nossa tal sociedade moderna, onde privacidade é lixo, ofensa e ao mesmo tempo meio de auto-promoção, vide o caso Cicarelli) é o suficiente para o infeliz não querer se arriscar a perder um dia de trabalho e, por conseqüência, o emprego. Perde muito mais que isso, e de forma hilária.
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A história seguinte, Os Homens-Pizza, merece pelo menos mais vinte linhas interpretativas, mas não vou fazê-lo para não induzir nenhuma interpretação menor a um texto elaborado com tanto cuidado – capricho este digno de artesãos italianos — , temos o problema do espaço e, ademais, a coluna está ficando por demais sombria e este livro, apesar das bobagens que estou escrevendo aqui, é acima de tudo de humor. De ótimo humor. Eu quase morri de rir ao lê-lo.
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O desenvolvimento de todas as histórias restantes (são oito belos contos no total do volume) e seus arremates são dignos do cacife literário do cara. As influências gráficas deixam evidente a intimidade com Robert Crumb e Will Eisner. E o melhor de tudo isso advém do fato de Laerte ser um artista pronto, de inegável maturidade artística, dono de – à parte as influências — uma voz própria, forte, vibrante, intensa, verdadeira e, acima de tudo, engraçadíssima.
Leiam, meus caros nerds, pois esse livro ainda é da fase anterior de Laerte, que precedeu a atual e sobre a qual eu não teria nada muito engraçado a dizer. Não obstante, a genialidade permanece. Duvida? Só ler as tirinhas publicadas na Folha de São Paulo nos últimos sábado e domingo. O Laerte que hoje se apresenta não é pior nem melhor do que o da época do livro-gibi aqui resenhado, mas é sem dúvida alguma bastante diferente. Muito mais adulto, elaborado, menos engraçado e – viva, urra, hoooooray – ainda relevante, ainda excelente.
Vou tentar colocar um pouco mais de cor na próxima coluna. Até mais, meus caros.
Rodivaldo Ribeiro é radialista, jornalista e escritor sem computador…

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