Quadrinhos

Três times de futebol, um estupro e agências de quadrinhos

Certamente a principal notícia deste final de semana prolongado, no universo do Brasil Brasileiro, foi o caso de estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro – um vídeo, publicado por um dos envolvidos, traz indícios de que trinta e três sujeitos (sim, três times de futebol) estupraram uma garota de 16 anos.

Para o caso de você ter estado os últimos dias em coma ou escondido debaixo de uma pedra, segue um link com uma reportagem bem ampla sobre o caso e alguns de seus desdobramentos.

Pois bem. Juízos diversos e casos policiais a parte, aparentemente a situação nada tem a ver com o nosso multicolorido mundo das histórias em quadrinhos, e passaríamos por ele não como leitores de gibis mas como sujeitos sociais.

Ou não. Sempre há quem nos traga a bola.

E isso aconteceu na forma de uma manifestação estranha, aberrante (pra não dizer estúpida) do desenhista Allan Goldman (brasileiro, com trabalhos pela DC) sobre algumas questões paralelas ao assunto:

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Isso deu o que falar e pessoas (as mais diversas) se manifestaram repudiando as colocações estapafúrdias de Goldman (entre elas, a incapacidade de perceber que a prática corriqueira de crimes sexuais no Brasil é consequência direta da falta de uma educação melhor antenada a questões de gênero). A coisa foi crescendo e, nos comentários subsequentes à publicação, Allan soltou pérolas ainda piores, mais ferinas e menos defensáveis.

Pois bem: a coisa cresceu a ponto de chegar até a Chiaroscuro Studios, agência brasileira de artistas que, capitaneada pelo Ivan Costa e Joe Prado, agencia(va) o Allan Goldman. Num comunicado bastante respeitoso, sem citar nomes nem nada, a empresa veio a público informar que rompia laços profissionais com determinados artistas.

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Talvez o caso morresse por aí. Mas, talvez diante das recentes enxurradas de denúncias sobre misoginia e assédio dentro da DC Comics, o lance virou notícia no Bleeding Cool e no Globo (entre outros) o que acabou pondo mais lenha na fogueira.

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Apesar de se dizer censurado e em nenhum momento sugerir que tivesse mesmo dito mais do que devia, Allan Goldman apagou grande parte dos posts públicos de seu perfil (ou mudou as configurações de exibição, vai saber) – não só aquele sobre o caso específico, mas alguns outros em que esquadrinhava a dominação comunista comandada pelo Foro de São Paulo da qual nos salvará o alvissareiro Jair Messias Bolsonaro.

Antes de continuar, quero fazer um lembrete de algo que eu, você e todo mundo que frequenta esse site sabe:

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Isso dito, é sempre importante que a gente não misture “liberdade de expressão” com “direito de falar e não ter consequências”. O(s) assunto(s) envolvido(s) é(são) sério(s) e manifestações acerca deles precisam ser ponderadas ao máximo, porque trazem consequências também sérias. Como eu disse em certa ocasião, precisamos acabar com a infantilidade do pensamento adulto, que não tolera ser contrariado no seu direito, supostamente inalienável, de desdenhar da população seja. Mais do que isso, a noção (ou falta de) de achar que falar é direito, saber do que se fala, não.

O comentário de Goldman, alheio ao objeto do caso de estupro em si, deixava clara a mais completa falta de noção sobre tudo o que se arvorou a dizer. Por exemplo, ao afirmar que identidade de gênero parte da mera afirmação (momentânea) dos sujeitos; ao desconhecer que a lei brasileira, em alteração promulgada em 2009, deixou de considerar o sexo das vítimas e dos autores relevantes nos crimes de estupro; e, mais ainda, a consideração de que uma política de Direitos Humanos é pauta exclusiva de “esquerdistas”.

Mas o pior mesmo é considerar, com as mesmas mãos e o mesmo teclado, que são coerentes posições de defesa do liberalismo econômico total ao mesmo tempo em que se reclama de ser excluído do staff do estúdio por manifestar publicamente opiniões francamente contrárias àquelas expressas pelo mesmo estúdio.

Se vivo fosse, George Orwell daria pulos com em ver o seu conceito de duplipensar tão em voga…

Ah, e antes de terminar, minhas últimas considerações finais:

1- Para quem quiser saber mais sobre a profunda marca do estupro no pensamento cultural brasileiro, pode clicar aqui (dá pra começar a pensar sobre);

2- Para aqueles mais legalistas, preocupados com os aspectos jurídicos do rompimento entre Chiaroscuro e Allan Goldman motivados por manifestações em página pessoal (ainda que de caráter público) de um dos envolvidos, seguem comentários da Justiça do Trabalho sobre a admissibilidade de publicações em rede social nos litígios trabalhistas (tomem por analogia);

3- Por fim, para aqueles que eventualmente podem se sentir incomodados acerca da redução das capacidades de auto-sutentação financeira do Allan Goldman, saibam que não faltarão Gentilis, Rogerezes Moreiras, Constantinos, Azevedozes e Lobãos interessados em dar-lhe um palanque. É só coisa de aguardar.

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