A gente vimos – Robocop (Sem spoilers)
O que nos faz humanos? Nossa capacidade de fazer equações matemáticas, construir prédios gigantescos e destruir o meio ambiente? Ou ser capaz de sentirmos amor, felicidade, tristeza, sermos altruístas ou egoístas? Esta é sempre uma discussão quando se trata de máquinas (ou de homens se tornando máquinas) na ficção. Nem o Robocop de Paul Verhoeven nem o Robocop de José Padilha entram muito a fundo nesse debate, embora ele esteja presente em ambos os filmes. Mas a verdade é que os dois Robocops, de 87 e de 2014, usam o tema apenas como desculpa para falar da sociedade e do período em que foram feitos, como todo bom sci-fi.
Em Robocop, (2014), estamos em um futuro próximo onde os drones (o termo que hoje está para as máquinas assim como a sustentabilidade está para o meio ambiente – ou seja, apenas um termo para marketing) são parte comum das missões de “pacificação” de outros países. Estes drones, criados pela americana Omnincorp, estão em todos os lugares – menos nos Estados Unidos, onde uma lei impede que robôs sejam usados na segurança pública.
A Omnicorp tenta de tudo para fazer a lei ser derrubada e poder usar seus robôs em solo americano – o único mercado que eles não conseguiram atingir ainda. Mas, mesmo com políticos no bolso e a mídia conservadora do seu lado, a opinião pública americana ainda é avessa à ideia de ter robôs nas ruas decidindo quem é mocinho e quem é bandido.
Eis que o presidente da Omincorp, Raymond Sellars, se dá conta de um “furo” na legislação: ela leva em conta apenas máquinas, mas não se aplicaria a um “homem-máquina”. Então, basta colocar “um homem dentro da máquina”, ou seja, ter um ser humano no controle, e é possível, não só burlar a legislação, mas usar o “Robocop” como um argumento de marketing, como um “rosto” para fazer a opinião pública aceitar a ideia de ter robôs no lugar de policiais.
Neste meio tempo, Alex Murphy, policial honesto de Detroit, se mete com quem não devia (entenda-se: um criminoso que tem a polícia de Detroit no bolso), e acaba sendo atingindo por um atentado que o coloca entre a vida e a morte. Isso torna Murphy o espécime perfeito para o projeto de Sellars. Mas as coisas, obviamente, não saem exatamente como o esperado e isto é que faz o filme “andar”.
Muitas comparações poderiam ser, inevitavelmente, feitas entre o Robocop do Verhoeven e do Robocop do Padilha. Como todo mundo fará isso, vou fugir das comparações e me focar apenas no remake, pelo único motivo de que é injusto – com ambos os filmes – compará-los.
José Padilha é um ótimo diretor, não só no sentido técnico, mas também em termos de relevância social, uma vez que sempre tenta fazer filmes “denúncia”, ou seja, falar sobre assuntos que, ou são sumariamente ignorados no cinema brasileiro ou não são tratados de forma tão sistemática. Além disso, Padilha também é um diretor que pensa “fora da caixa”, tentando ir além e falar sobre temas diversos, mesmo tendo por base a sociedade em que vivemos. Todas estas qualidades são vistas em Robocop: Padilha usa o filme para falar sobre temas que vão da corrupção ao corporativismo, passando por ética, manipulação da imprensa e Filosofia da Mente.
Sim, Filosofia da Mente. Acredite se quiser, hoje a neurociência e a Filosofia da Mente praticamente uniram forças para tentar entender como o cérebro funciona, e isso tem sido bastante usado (em termos teóricos, é bom deixar claro) na tentativa de conceber uma inteligência artificial “real”, ou seja, uma máquina que pense como um humano. Entre os temas da temas da Filosofia da Mente estão como a mente conhece a si mesma, o que é a objetividade, o livre-arbítrio, a tomada de decisões, as emoções e como a consciência é formada no cérebro. Temas que, obviamente, entram em cena quando falamos de um ser metade homem, metade máquina e, embora seja exploradas de forma sutil, estão lá até no nome do cientista criador do Robocop, Dannett Norton (óbvia homenagem a Daniel Dennett, um dos mais populares Filósofos da Mente da atualidade).
A corrupção policial não é tão explorada no filme; ela está lá, mas mais como um meio para um fim (a narrativa) do que como um debate social. O real debate social do filme está na relação mídia – publicidade – opinião pública – política, raramente abordada da forma como foi em filmes mais “pop”. Padilha aproveita para cutucar o patriotismo e o “imperialismo” americano quando fala sobre as trâmites para se ver derrubada a lei que impede robôs de fazer a segurança pública americana, enquanto eles estão “pacificando” países mundo afora com seus drones. Padilha brinca sutilmente com as diferenças entre seres humanos e robôs, retratando a população americana como tão programável quanto um robô, ao ser facilmente moldada pela manipulação midiática.
O filme lembra Tropa de Elite 2 em alguns aspectos, principalmente por que muito do filme trata da mídia (representada por um programa estilo Cidade Alerta) moldando a opinião pública para que se tornem a favor de derrubar a lei e permitir que robôs sejam inseridos dentro de território americano, interesse principal da Omnicorp. Em outros aspectos, Padilha expande sua “denúncia” para mostrar o papel que elementos como o departamento de marketing desempenha nesta manipulação (o visual escuro tem tudo a ver com isso) e das peças que compõem o corporativismo visto no filme (e que reflete uma realidade desconcertante, tanto nos EUA quanto no Brasil).
É claro que o elemento moral e emocional também está lá. Desta vez, não há mocinhos ou bandidos, heróis ou vilões: há apenas corporações, instituições e vítimas. Nenhum dos personagens é retratado como “vilão”, e os que poderiam ser considerados como tal (como o chefe do tráfico de armas que tenta matar Murphy) são rapidamente tirados da jogada para reforçar o caráter menos dicotômico e mais moralmente flexível do filme.
Além disso, desta vez a família de Alex Murphy desempenha um papel bastante relevante, representando os cidadãos comuns levados a acreditar numa solução milagrosa e depois lesados pela grande corporação. Além, é claro, de servirem como a ponte que liga Murphy à sua humanidade.
Em termos de blockbuster, apesar do filme ter sequências bem bacanas, ele não tem muitas “cenas de ação”, no estilo típico blockbuster americano de ser. Inclusive, boa parte do filme trata de como apresentar o Robocop para o público e como resolver “problemas” advindos do fato de que Robocop é, ao menos em parte, humano. Mas não pense que isso deixa o filme parado; ele é um filme bem ágil e, diferente do que muitos céticos pensavam, a falta da ultraviolência vista no filme original não é nem um pouco um problema.
Um ponto que talvez faça os espectadores torcerem o nariz é o que eu vou chamar aqui de “fator Cavaleiro das Trevas”. Muita gente reclamou que o Cavaleiro das Trevas “não tinha clímax”. Ou seja, para algumas pessoas, só existe clímax quando ele é “explosivo”, e para muitas pessoas, foi meio “broxante” ver como desfecho uma situação de tensão ao invés de perseguições e explosões.
Com Robocop, temos efeito semelhante. A parte mais “ação desenfreada”, acontece antes do climax, que é bem mais tenso e emocional do que os espectadores mais “massaveio” esperariam, o que pode desagradar a muitos espectadores.
No fim das contas, não posso considerar Robocop um filme “massaveio”, apesar de que com certeza ele é um filme “pop”. Mas por trabalhar com temas menos rasos, e não dar respostas objetivas, talvez isso confunda o público mais acostumado às obviedades do tipo “aqui temos o vilão, aqui temos o herói”. Sem contar as cutucadas, muitas vezes sutis, mas algumas vezes bastante escancaradas, no modo de vida americano, no seu patriotismo exagerado e na maleabilidade de opiniões. Talvez isso explique por que Robocop não esteja indo tão bem assim nas bilheterias americanas, mas está indo relativamente bem em outros países. Estou curioso para saber qual será a bilheteria do filme por aqui.
Robocop é bom? Sem dúvida! É melhor que o original? Não dá para comparar. Para os saudosistas, o filme tem várias referências ao original. De minha parte, mal posso esperar pelo DVD e conferir os extras e as cenas cortadas.
Nota: 9