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A gente Vimos: Birdman, ou a Inesperada Virtude da Ignorância

Quem você é de verdade, quando ninguém está vendo? O amigo mais engraçado ou o mais grosseiro da família? Qual é o real “você”, o empregado elogiado pelo patrão ou o escroto que comenta nas redes sociais? Você é uma pessoa com vontade própria, ou refém da cultura e da criação dos seus pais? É alguém com personalidade ou apenas uma mente que acumula experiências de histórias passadas (reais ou imaginárias)? É um indivíduo no controle de sua própria vida ou apenas o resultado de uma série de acasos que por ventura acredita que está consciente do mundo?

O problema da identidade não é um tema novo – de fato, deve ser uma questão que permeia o homem desde que ele entendeu que era um indivíduo separado dos outros. Mas é sempre uma questão pertinente, e a perda da identidade em meio a uma realidade alicerçada em mentiras e aparências é a base do filme Birdman, de Alejandro González Iñárritu.

Na história, Riggan Thomson (Michael Keaton) interpreta um ator de Hollywood muito famoso, mas estigmatizado por ter encarnado no passado “Birdman” – um super-herói do cinema que se tornou um ícone cultural, que teve 3 filmes, mas que após recusar o quarto teve uma queda na carreira. Hoje, ele pretende se reinventar no teatro, dirigindo, escrevendo e atuando na adaptação de um texto consagrado para a Broadway, uma tarefa que se prova muito mais difícil do que ele esperava, tendo que lidar com sua filha drogada, atores instáveis e, é claro, com seus próprios demônios interiores.

É difícil saber por onde começar ao tentar falar sobre Birdman. Primeiro, passando-se essencialmente apenas no teatro onde os ensaios da peça (e a apresentação propriamente dita) se darão, logo se cria um ambiente familiar para o espectador que ajuda a nos identificarmos com os personagens. Além disso, Iñárritu usou o recurso do “one take” (onde a câmera “segue” o personagem e praticamente não há cortes) e conseguiu um resultado fantástico, dando bastante intimismo e, na falta de um termo melhor, individualidade para a película. E mais impressionante ainda é ver esse recurso sendo usado com efeitos especiais como explosões e bichos voadores, que provavelmente foram adicionados apenas na pós-produção. Um trabalho bastante ousado e corajoso.

Os atores merecem um parágrafo à parte. Michael Keaton certamente mereceu os prêmios que já ganhou até aqui (acho que foi o Globo de Ouro e o Critics Choice Awards, se não me engano), ele simplesmente encarna as discussões que o filme levanta. Emma Stone, que vem provando que não é apenas uma “atriz modinha”, faz provavelmente o melhor papel até aqui (pelo menos dos filmes que eu vi) e Edward Norton parece ter embarcado na ideia de interpretar um ator difícil (característica que não raro é atribuída a ele na vida real) sem amarras e fez um personagem para ser lembrado. Até Zach Galifianakis, que dificilmente seria pensado como um ator “sério” dá um show interpretando o agente de Riggan.

Como todo bom filme, Birdman possui diversas camadas. Há desde os paralelos entre as carreiras dos atores e seus personagens (como Keaton e Norton) e entre a Hollywood crua que não é vista pela audiência com frequência, até detalhes mais simples, como mostrar partes de Nova York normalmente só vistas por moradores da cidade ou pontos de vista diferentes de áreas mais conhecidas, quase como uma jornada ao coração da “verdadeira” Nova York, não a Nova York dos turistas e dos filmes, romanceada, mas a Nova York onde pessoas de verdade e emoções de verdade (boas ou ruins) acontecem a todo momento entre cartazes, outdoors, flashes e apresentações.

Há também, como insinuado no começo, o problema da identidade, e a busca por quem realmente somos, um tema perfeito para uma história fictícia sobre pessoas que fingem ser outras pessoas para viver (e fingem, muitas vezes, não só nos palcos e nas lentes, mas também para a imprensa, para os pedestres e para si mesmos) e que também lança um olhar sobre nossa própria vida e sobre quem realmente somos. Riggan é resistente a usar redes sociais como twitter, por exemplo, e a relação entre o que as pessoas comuns fazem no dia a dia, ao vivo, e o que elas fazem na internet, é um bom paralelo com a crise de identidade que os atores vivem no mundo real. Hoje, em certa medida, todos somos atores (se é que não fomos sempre), e é difícil saber se pessoa com quem você está conversando naquele momento é a pessoa “real” ou uma máscara social.

Birdman, ou A Inesperada Virtude da Ignorância é um olhar engraçado, cínico e, ao mesmo tempo, cruel da vida privada em Hollywood – e da vida em geral. Um filme que não nos instruiu de forma mastigada como devemos reagir a cada cena ou ao filme como um todo, nem nos diz onde a realidade termina e a fantasia começa. Mas não faz diferença: estes limites já não são claros no mundo real de qualquer maneira.

Nota: 9,9999… (uma dízima periódica)

Algures

Meu nome é Algures e tenho 41 anos (teria se tivesse vivo). Morri aos 13 anos tentando ouvir o Podcast MDM proibidão. Envie esse post para 20 pessoas para que eu possa descansar em paz. Caso não repasse essa mensagem, vou visitar-lhe hoje à noite e você vai se arrepender. Dia 15 de julho, Rafael riu dessa mensagem e 27 anos depois morreu em um acidente de carro. Não quebre esta corrente a não ser que queira sentir minha presença (atrás de você)

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