A gente vimos: O Legado de Júpiter (Netflix)
O MdM está por aí há quase 20 anos. Uma das vantagens de estar aqui online por todo esse tempo é ter acompanhado bem de perto todas as transformações no mundo das HQs desde 2002… E Mark Millar com certeza é um capítulo à parte durante toda essa mudança no mercado.
Um dos primeiros trabalhos do Mark Millar foi no gibi baseado no desenho animado do Super-Homem dos anos 90. Ele é fã do personagem – tão fã que tem em sua casa a roupa usada por Christopher Reeve em Super-Homem 3 (acompanhei toda a saga do roteirista pra ganhar o leilão dessa fantasia em seu fórum no início dos anos 2000).
Apesar de constantemente sacanearmos o Mark Millar nos podcasts, se tem uma coisa que eu posso falar é: sua paixão pelo Super-Homem é verdadeira e ele entende bem o que o personagem representa.
Mesmo enquanto trabalhava na Marvel durante a criação do universo Ultimate e em muitos outros títulos, como Wolverine, Homem-Aranha, etc., Millar sempre dizia em seu fórum (Millarworld) que seu sonho era voltar a escrever o personagem, mas a DC nunca o chamava.
Após alguns anos na Marvel (e sem sucesso em sua tentativa de voltar a escrever o Super-Homem), Mark Millar decidiu fazer o seu próprio selo de quadrinhos, onde o principal objetivo era aplicar o que ele tinha utilizado nos Supremos e no Authority e fazer histórias “cinematográficas”, com cenas grandiosas, roteiro cheios de açcão e praticamente prontos para serem adaptados para o áudio-visual.
Sua primeira obra do Millarworld (seu próprio selo de quadrinhos) foi Procurado.
Antes do filme sequer ser anunciado, Millar fez um post em seu fórum na época falando que tinha visto algumas cenas em computaçcão gráfica da adaptaçcão cinematográfica de seu gibi. Na época ele já fazia ressalvas: “É muito diferente do que eu escrevi, não se assustem, mas as cenas de ação são maravilhosas”.
Ou seja, deu-se início o projeto que o Mark Millar queria: escrever seus gibis, ter controle criativo sobre eles, vender para outras mídias e faturar a grana sem passar por uma editora, como era no caso da Marvel e DC.
Ora, não se esqueçam que o Jim Starlin, criador do Thanos e das Jóias do Infinito (que hoje são referência mundial da cultura pop) não recebeu nada por isso da Disney – ele inclusive teve que pagar do próprio bolso o ingresso do cinema pra ver suas criações na telona.
Por aí, dá pra entender o movimento de carreira do Mark Millar e o porquê dele abandonar o prestígio das editoras Marvel e DC pra iniciar seu próprio selo.
Mas voltando ao Super-Homem.
Muito do que o Mark Millar escreve é uma homenagem ao personagem da DC e o que ele representa. Huck, Superior e Legado de Júpiter são algumas das obras que se utilizam dos valores essenciais da criação de Jerry Siegel e Joe Shuster.
Quando a Netflix anunciou a adaptaçcão do Legado de Júpiter, fiquei até animado!
Um dos temas centrais do quadrinho de Legado de Júpiter é sobre como os valores “ultrapassados” de heróis da era de ouro, como altruísmo e bondade, são traduzidos e carregados para os dias de hoje, na cultura das celebridades, das aparências e do egocentrismo. Tudo o que acontece em volta (como a viagem de Sheldon e sua turma nos anos 20 para a misteriosa ilha ou as rápidas, maravilhosas e épicas cenas de porradaria desenhadas pelo Frank Quitely) são apenas pano de costura e quase como pequenos detalhes para dar base de apoio para a mensagem principal, que é sobre os valores de heróis tipo o Super-Homem.
Millar não está preocupado em dar muito contexto para todo o mundo de Legado de Júpiter. Tanto faz que motivou Sheldon e sua equipe a ir até a ilha misteriosa que apareceu em seus sonhos. Tanto faz como Sheldon convenceu todo mundo a fazer aquela viagem absurda. Tanto faz um monte de coisa.
E o que a Netflix vai e faz?
Vai e foca exatamente nesses pormenores que nada interessam à obra original – e que só atrasam a narrativa da série e a deixam mais e mais entediante.
Toda a viagem de Sheldon e sua equipe virou uma trama longa e desnecessária tipo uma cópia barata de Lost. Todo o relacionamento do Utopian e seu filho se alongou por um monte de episódios e virou uma novela mexicana e por aí vai.
Isso tudo, é claro, acompanhado de uma produção que beira filmes amadores e atuaçcões que são, por muitas vezes, cômicas de tão ruins.
Legado de Júpiter era pra ser um (ou dois) filmes divertidos, rápidos e que falava sobre como os valores dos heróis era de ouro (como o Super-Homem) podem sim passar para os dias de hoje (a parte mais legal de toda a série das HQs é como ela passa a ser focada na Chloe Sampson e sua família).
Porém, a Netflix resolveu focar no que é totalmente desnecessário, alongar tudo o que é chato do gibi e empacotar em uma produção nível novela da Record.
E olha, o Mark Millar criou o selo pra deixar tudo mastigado pra ser adaptado ao áudi-visual. Esse era o objetivo declarado do roteirista com suas histórias do Millarworld. E a Netflix conseguiu a façanha de fazer essa série desse jeito.
No fim, a empresa de streaming pegou um gibi nota 6 e transformou em uma série nota 4. Parabéns campeões!