[A gente lemos] Mundo Mulher, de Aminder Dhaliwal
Era 2002 quando Brian K. Vaughan se juntou a Pia Guerra para contar a estranha história do último homem num mundo em que tudo que tinha um cromossomo sexual Y, em Y, o último homem.
De lá pra frente, muita coisa aconteceu. As mídias sociais ganharam muito mais espaço e com elas, várias novas (e novos) artistas surgiram e alcançaram seus públicos. É o caso da canadense Aminder Dhaliwal.
Sucesso no Instagram com seu Woman World, publicado quinzenalmente a partir de março de 2017, a autora chega ao Brasil em versão impressa pela revivida Conrad.
Mas as relações com Y, o último homem não vão muito além de que, tanto lá quanto em Mundo Mulher, os machos humanos foram extintos. Porém, diferente do plot de K. Vaughan, no trabalho de Aminder Dhaliwal um problema genético fez com que somente os homens fossem extintos, restando os animais do sexo masculino e todos os humanos que se identificam como mulheres.
No presente da trama, os homens foram extintos há tanto tempo que quase ninguém se lembra de como era a vida antes (até porque um grande cataclismo aconteceu logo depois da extinção, piorando tudo).
Isso tudo só é possível porque, ao contrário da capa sóbria, Mundo Mulher é um gibi de humor. Isso quer dizer que Aminder se dá ao luxo de deixar precisões e complexificações de trama para escanteio em fazer de tiradinhas interessantes sobre um mundo sem homens. Então, que se lasque a pseudociência necessária para explicar como os humanos de gênero masculino foram extintos, enquanto todo mundo que se identifica como mulher, não. As coisas são assim. os homens morreram, o mundo deu zebra geral, as mulheres esqueceram um monte de coisa do mundo de antes, e se reproduzem artificialmente – porque a espécie tem que seguir.
Feita a contextualização do universo, o álbum nos apresenta um povoado (de princípio sem nome) governado pela prefeita Gaia – uma mulher não branca, mas de pelos brancos, e sempre totalmente nua.
Além da prefeita (e de várias cidadãs não nomeadas), também vivem no povoado Yumi, moça ansiosa e dotada de um humor digamos, particular; Layla, paixão antiga de Ina, a poetisa iogue; Laura, a companheira de Layla; a Doutora, uma médica mastectomizada, sempre de torso nu, que veio da capital; Uma, a secretária da prefeita Gaia; Ulaana, uma mulher mais velha, a única do vilarejo que se lembra do mundo de antes; e as crianças Naomi e Emiko, essa sempre curiosíssima sobre essas criaturas pré-históricas chamadas “homens”.
O que nós acompanhamos então são as mais diferentes situações na vida dessas mulheres vivendo num mundo distópico – desde o meio triângulo amoroso que existe entre Lara, Layla e Ina; a imensa curiosidade de Emiko, fissurada pelo conceito de “segurança de shopping”; a construção de um hospital na vila, até as expedições de exploração pelas ruínas do mundo antigo e coisas do tipo.
O que mais me diverte em Mundo Mulher são os momentos em que as personagens estão diante do desconhecido do que era o mundo do antes: como as mulheres eram tratadas quando sofriam com cólicas menstruais? Ou, considerando o tipo de coisas que se encontra na seção de “despedida de solteira” de uma ruína, o que se deve esperar na seção de “despedida de solteiro”?
E por aí vai.
Em termos narrativos, Mundo Mulher não tem nada de especial, nem se pretende a isso. O álbum tem uma edição muito legal, com páginas mais elaboradas e coloridas no mundo do antes, e ficando mais leve e ágil no Mundo Mulher em si (ou Ladilândia. Ou Macrocosmo Matriarcal. Quem sabe o Globo das Garotas?), e isso é o que de mais “não-usual” tem no gibi.
(ah, a piadinha na página de dados catalográficos também é muito bem sacada – antes de começar o gibi propriamente dito, o álbum já tinha me arrancado um sorriso. Não sei se é original do pessoal da Conrad ou se veio de fora, mas achei ducaralho os nomes das pessoas da equipe com os homens riscados)
Aminder é uma cartunista, no sentido mais claro da palavra: a arte não é pra ser esmerada, requintada, mas para ser ágil (e não atrapalhar o tempo da piada) e mesmo assim trazer uma camada de humor para o conjunto (como a gag daí de cima).
Vai um pouco na linha da produção da Sarah Andersen (aqui publicada pela editora Seguinte, com álbuns como “Ninguém vira adulto de verdade”, “Uma bolota molenga e feliz” e “A louca dos gatos”), ou Andrew Tsyaston (de “Não tá fácil pra ninguém”, também da Seguinte): aquela arte econômica, quase sem cenário (a não ser que ele seja necessário), em que a graça vem muito dessa economia, feita na medida certa.
Enfim, é isso. Mundo Mulher é um bom gibi de entretenimento, daqueles que você lê, ri (e teve até um momento no final já que eu soltei um EITA!) e sai um pouquinho mais leve da leitura. Se tem uma coisa que o atual momento dos quadrinhos no Brasil tem favorecido é isso, podermos acessar outros bons autores, contemporâneos, sem que eles precisem ter a chancela de do prêmio isso ou aquilo, ou da mega editora X ou Y.
Se anda tudo ruim na vida, vai por mim: o Mundo Mulher é showdi!
Mundo Mulher – Woman World, de Aminder Dhaliwal. Editora Conrad, 2020. 264 páginas, R$59,90.