Quando foi criado, em 1938, o Superman talvez não tivesse a mesma carga conceitual que tem hoje. Como ele é o 1º super-herói da nona arte (o que já era um absurdo em avanço temático), dificilmente a dupla Jerry Siegel/Joe Shuster lhe imputaria uma responsabilidade maior do que ser apenas um exemplo para os bons cidadãos americanos. Clark Kent era um rapaz promissor, puro de coração e que só queria ajudar as pessoas em nome do Bem-Comum. Para contribuir ainda mais com essa psique simplista, ele foi criado por um casal de meia-idade semi-puritano do Kansas. Enfim, Clark era um bom garoto, só atravessava na faixa e tinha um futuro brilhante pela frente.
Só que era aí que estava o problema. Seus criadores não contavam com certas “seqüelas” a longo prazo. O mundo mudou, e Clark nunca foi exatamente compreendido pela sociedade. Sempre viveu mais solitário do que qualquer ser humano na Terra. Sempre foi (ou se deixou ser) reprimido socialmente – e sexualmente. E era o último sobrevivente de sua raça. Se isso já deixaria qualquer ser humano com uma personalidade pra lá de intrincada, imagine então com um alienígena se passando por um ser humano. Seria mais fácil para o Clark se ele fosse um vilão.
Em termos de longevidade na cronologia dos quadrinhos, o Superman foi quem mais sofreu, disparado. Nenhum outro personagem teve tantas reformulações quanto ele (o Fantasma não conta…). Fora os costumeiros mega-eventos da DC (Crise nas Infinitas Terras, Zero Hora), Clark teve sua origem recontada pelo mestre John Byrne, na excelente Man of Steel, e, mais recentemente, por Mark Waid, na ótima (mas desnecessária) Birthright. Entre uma coisa e outra, ele até “morreu”…
Apesar de todas essas mudanças e atualizações, o personagem é dono de um contexto tão complexo e abrangente que ainda não foi plenamente suprido – e dificilmente será. O Superman é o único super-herói que está em franca corrida contra o tempo, e que não pode ser ganha apenas em suas revistas mensais pré-programadas. Talvez seja essa a razão por ele ser tão bem sucedido em elseworlds e em personagens claramente baseados nele. Vejamos alguns exemplos.
Uma das melhores adaptações do Superman que eu já vi. O coronel Buck Caine, o Espírito Público (não por acaso, o nome desta coluna), foi criado por Pat Mills e Kevin O’Neill, para a mini-série Marshal Law, de 1988. Como o seu codinome já diz, ele é um super-herói que personifica o ideal de perfeição perante a opinião pública. Ele é um Superman que conscientemente manipula as massas ao seu favor e que tem amplas ambições políticas. Ele toma para si o que Clark normalmente rejeitaria: a aceitação, o glamour e a supremacia. Em outras palavras, o Espírito Público é o Superman, se fosse o campeão da liga de futebol, se fosse o cara que casou com a rainha do baile e se fosse o candidato favorito à presidência dos Estados Unidos. Uma típica beleza americana.
Mouli Senah Kallark Bel Farsi, mais conhecido como Gladiador, traz referências até em seu nome de batismo (“Kallark”). Ele é um pretoriano da Guarda Imperial de Shiar, e já deu muito trabalho para os X-Men, na Saga da Fênix Negra. Inicialmente, nutria uma “certa” similaridade com o Clark: força descomunal nível 100, invulnerabilidade, capacidade de vôo, hiper-velocidade, sobrevivência no vácuo e até a famosa visão de calor. O ápice do poder alienígena. Mas essa semelhança virou certeza de zoação quando se soube da natureza dos seus poderes: sua capacidade psiônica de mantê-los enquanto estivesse confiante de sua superioridade em combate. Seus poderes simplesmente desaparecem se ele se achar desacreditado. Essa fraqueza psicológica foi bem explorada pelo Quarteto Fantástico, e um tanto forçadamente pelo Míssil, do X-Factor (alô Luwig X!). Curiosamente ele perdeu para o Thor, certa vez. Kurt Busiek não deve ter concordado.
Uma provável supressão da persona do Clark. Esse é Apollo, integrante da equipe de super-heróis mais politicamente subversiva dos quadrinhos: The Authority. Recapitulando, foi o Frank Miller e seu Cavaleiro das Trevas que iniciou uma das relações mais conturbadas dos quadrinhos. Superman e Batman, sempre contrastaram, em origem e destino. Eles têm uma relação de não-cooperação mútua, mas com o mesmo fim, que é a Justiça. Como se fossem dois lados distintos de uma mesma pessoa. A contraparte de Apollo (que tem seus super-poderes alimentados pelo nosso Sol…) é o herói Meia-Noite, uma clara alusão ao homem-morcego. Mas a coisa não pára só nesses conflitos de ideais, e eles formam uma das raras duplas homossexuais dos quadrinhos. Sem muitas crises, eles convivem bem, como se fosse o Clark num elseworld cor-de-rosa. Mas brincadeiras à parte, The Authority é um dos melhores quadrinhos dos últimos anos (já estiveram envolvidas gente do porte de Warren Ellis, Mark Millar, Bryan Hitch e Frank Quitely). Vale a pena conferir. Com ou sem boiolagem.
É o Superman, se sua nave tivesse mesmo caído nos Estados Unidos. Debaixo do cabresto de J. M. Straczynski, a história de Clark é recontada, cuidadosamente, ao melhor estilo de conspiração governamental à Arquivo X. O bebê alienígena é rapidamente resgatado por uma unidade militar americana, é batizado Mark Milton (tudo em nome da aliteração…), e ganha um codinome que tem a mesma denominação do projeto: Hipérion. Aqui está tudo o que não vimos na prática na criação do Clark: os “pequenos” acidentes domésticos envolvendo seus super-poderes, o temor natural de seus “pais” diante de sua desconhecida natureza alienígena, seu anonimato forçado, sua obsessão em ser aceito pelos demais e em descobrir anomalias que lhe sejam familiares. Adotado pelos EUA, ele se torna o representante-mor do sonho americano e peça estratégica fundamental em sua linha de defesa. Uma marionete do Estado, dominado por um jugo de boa-índole e princípios. Participou ativamente da Operação Tempestade no Deserto, mas ninguém o viu, pois ele era muito rápido…
É nas brincadeiras que saem as maiores verdades. Em A Pro., Garth Ennis prossegue em sua cruzada de desmistificação dos super-heroís, e o Super não poderia ficar de fora. Aqui, ele é o molde para um personagem chamado… Santo. Sutil como uma marretada. O Santo é uma conjunção do que o Clark tem de mais ridículo: a eterna hesitação, o maniqueísmo exagerado, a aura incorruptível e imaculada, a inocência que chega às raias do improvável e sua obsessão sistemática por ordem – mesmo quando o caos é naturalmente a melhor solução. E como casos graves demandam soluções drásticas, foi preciso um boquetão de uma profissional (a “pro” do título) para que o Clark… digo, o Santo relaxasse e esquecesse por um segundo as suas asfixiantes responsabilidades. Mas não durou muito, afinal ele é um super-homem… A puberdade deve ter sido uma fase difícil pro Clark.
Outra forma de abordagem muito utilizada atualmente é alterar a situação geográfica do Superman. Ironicamente, um conceito muito combatido (“o caráter das pessoas é o reflexo do ambiente em que vivem”) se tornou fundamental para a construção da personalidade do Clark.
No hit Superman: Red Son, Mark Millar colocou a nave de Clark em rota de colisão com a antiga União Soviética, e ele logo foi apadrinhado pela ditadura stalinista. Com o planeta vivendo um complicado pós-Guerra e os blocos mundiais se posicionando, a URSS estava de posse da “arma” que faltava aos EUA. Algo muito mais ameaçador do que uma bomba nuclear. Clark ganhou contornos de um Grande Irmão, quase onisciente, observando tudo e todos, e consertando as falhas conforme o seu conceito marxista de perfeição. Apesar de seco e exageradamente sintético em sua narrativa, Millar traçou um excelente perfil comunista do kryptoniano.
Imagine Superman: O Filme estrelado pelo pessoal do Monty Python. Assim é Superman – True Brit, a primeira HQ roteirizada pelo espirituoso John Cleese (ex-MP). Mais do que uma simples adaptação do Clark, ou melhor… do Colin Clark, aqui ele é transformado totalmente em um britânico, por mais alienígena que seja. E isso inclui todas as nóias e manias do povo que dirige do lado direito do carro. Exemplo:
Mãe adotiva: “Ele estava no banheiro. De novo!”
Pai adotivo: “Nosso garoto está crescendo!”
Mãe: “Ele me contou que estava voando.”
Pai: “Voando? No banheiro?!”.
Agora, pior mesmo foram as privações, segundo o rígido método britânico. Clique aqui para conferir algumas. Sobra até para o Homem-Aranha. E pô… sem visão de raio-X…?
Esses exemplos são apenas a ponta do iceberg. O Superman já inverteu a rota Krypton/Terra, já virou um guerreiro desmemoriado, já se tornou “elétrico”, já foi recriado pela entidade Stan Lee, etc. Clark continua sendo um prato cheio para todo tipo de adaptações, algumas até impensáveis. Mas com certeza, a maior delas será a vindoura retomada de sua franquia no cinema, capitaneada pelo ex-mutante Bryan Singer. Tudo no esquema e em boas mãos, só nos resta torcer. E que Jor-El abençoe mais essa empreitada do Homem de Aço.