A gente lemos: Vizinhos, de Laerte
Eu sei que choverão as mesmas piadinhas batidas e repetitivas por parte dos comentários, relacionando a minha predileção pela obra e pelo artista Laerte ao seu travestismo. Acontece. Dá preguiça, mas acontece. A verdade é que hoje, 2013, pra mim não há autor/autora de quadrinhos no Brasil que seja maior do que ele. Não tem. Seja em termos de domínio da técnica gráfica, seja em termos de temáticas abordadas, em forma de abordagem… Laerte é o maior de todos, e não é nem uma questão meramente comparativa – eu simplesmente acho que não tenho lido nada produzido por aqui que tenha o impacto e a lucidez do material que ele tem trazido, simples assim. Isso quer dizer que tudo que ele produz é excelente? Não, claro. Seu último lançamento, por exemplo, a coletânea das tiras de Lola, a andorinha, não me atrai, nunca atraiu, é uma personagem da qual não gosto (antes dela tinha a Suriá, a menina do circo, que eu também não gostava. Acho que o problema é com as séries voltadas para o público infantil. Vai saber).
Enfim, feito esse preâmbulo, falo então de seu penúltimo lançamento, a graphic novel “Vizinhos”. Parte da série (ou selo?) Mil, criado por Rafael Coutinho (“1000 possibilidades narrativas. 1000 dinheiros no bolso. Assim é a revista 1000, uma publicação de poucas páginas, sem palavras, mas com muito espaço para a experimentação. A tiragem é de 300 exemplares e as 100 primeiras, vendidas a 10 dinheiros, rendem… dinheiro esse revertido para a milenar causa do autor.” segundo a descrição na contracapa do álbum)
Apesar de curta (são apenas 26 páginas), Vizinhos é, até o momento, a mais longa HQ de Laerte. “O Polco ERRAAAAAAAA Muchacha é muito maior, 96 páginas! PQP cara burro!”, alguém fatalmente vai escrever nos comentários. Pois eu digo não! Apesar de ter mais páginas e contar uma história inteira, Muchacha é uma tira seriada, com trechos de quatro quadros contando a história. Diferente disso, Vizinhos é uma HQ mesmo, pensada e executada como tal. Coisa de forma, não de conteúdo.
Enfim, sem diálogos, Vizinhos conta a história de um homem (obviamente sem nome) em conflito com um flanelinha que opera na porta de sua casa. A trama se embrenha na tensão silenciosa decorrente desse embate.
Sem exageros de fanboy, acho que poucos autores fariam uma leitura tão tensa e tão bem retratada sobre algo pequeno do cotidiano como Laerte fez aqui. Vizinhos é angustiante (também pela somatória do papel vermelho e da falta de texto) na medida, a tensão se corta à faca. E o final, bem, o final é o único possível – é um retrato do cotidiano, da vida comum: nenhum Superman (ou Overman) surgirá para arbitrar a disputa e estapear o lado “errado”.
Na arte (aparentemente toda finalizada apenas a lápis), Vizinhos lembra muito o trabalho de Jules Feiffer em “O Homem no Teto”: tudo é rascunhado, há sombras do rascunho ao fundo, como se Laerte fosse um observador daquela história, registrando com pressa tudo o que via para não deixar escapar nenhum detalhe. Pra mim, aí se exprime a genialidade: no traçado rápido, quase descuidado, mas capaz de pôr meio mundo de “desenhistas” no chinelo.
Enfim, se você não sacou, Vizinhos é uma crônica do cotidiano magistral. Como praticamente tudo o que leva o nome de Laerte Coutinho (independente da identidade de gênero com a qual ele/a se apresente) vale muito a conferida – e o cofre.
Vizinhos, de Laerte. Pela Narval/Cachalote. 26 páginas, R$20,00, à venda no site da Narval Comix.
Nota: 8