[A gente lemos] Sherlock Time, de H. G. Oesterheld e Alberto Breccia
Há um mundo de quadrinhos lá fora, desconhecido por muitos de nós.
Há um universo de possibilidades lá fora e nós muitas vezes desconhecemos.
Estas frases podem tanto descrever a produção em quadrinhos argentina, imensa, potente e e muito desconhecida por nós, como também um de suas obras, Sherlock Time, de Oesterheld e Breccia.
Para quem desconhece em absoluto, Oesterheld é considerado um dos papas das historietas argentinas: roteirista profícuo, trabalhou com nomes da potência de Hugo Pratt (em Sargento Kirk e Ernie Pike), Francisco Solano López (O Eternauta I e II) e claro, Alberto Breccia (Sherlock Time, O Eternauta, Che e Mort Cinder). Ingressou na resistência armada de esquerda à ditadura civil-militar argentina e desapareceu, sequestrado pelo regime, em 1977.
Por sua vez, Alberto Breccia provavelmente nos é ainda mais desconhecido, na mesma medida em que foi um monstro da arte sequencial. Dotado de um estilo acachapante, cheio de experimentalismos (a história de que usava gilete para desenhar alguns quadros de Mort Cinder é quase mítico) e personalidade, teve pouca coisa publicada no Brasil: a biografia de Che (com o Oesterheld) e um pedaço inexplicável de Perramus (com roteiros de Juan Sasturain). Seu filho, Enrique Breccia (que também trabalhou na biografia de Che), tem um lastro de publicações maior no país, apesar de, na minha humilde e correta opinião, ter um estilo fantástico, mas muito aquém da genialidade paterna.
Pois bem: em minha recente viagem à Argentina, tudo o que eu não podia deixar de fazer era adquirir alguns gibis (e uns livros sobre arte pré-colombiana e representações visuais, mas isso é coisa pra outra hora). Apesar de praticamente desconhecida por nós, os hermanos têm uma bela tradição de publicação e consumo de quadrinhos. Mesmo materiais europeus e norte-americanos nunca publicados aqui na República das Bananas têm edições portenhas, o que fatalmente gerará inveja em muito leitor/colecionador Brasil afora.
Como pra navegar em mar aberto é preciso um norte, me foquei nos artistas cujo trabalho já conhecia e saí a caça de material desconhecido deles. Foi assim que trombei com o volume 7 da Nueva Biblioteca Clarín de la Historieta, estrelada por Sherlock Time, personagem totalmente inédito pra mim de quem gostei bastante.
Ao total, são onze (menos uma – calma sua piranha, eu vou explicar) histórias. Publicadas originalmente na revista Hora Cero Extra de Oesterheld e seu irmão, o roteirista faz aquilo que marcou vários de seus outros trabalhos: episódios curtos, na lógica de “monstro da semana” e que vão, lentamente, apresentando detalhes dos personagens.
Assim, a primeira história (publicada no número 5 da Hora Cero Extra, de 1958) nos apresenta Julio Luna, um recém aposentado que acaba de comprar um casarão fantástico a preço de banana. Enquanto está admirado de sua aquisição, Luna tromba com um jardineiro que lhe avisa que a casa é mortalmente amaldiçoada e, enquanto inspeciona os jardins, se depara com um estranho sujeito escavando nas proximidades de seu torreão. Resumindo, Luna entra em casa, ela é de fato “amaldiçoada” e quase se fode, sendo salvo pelo estranho sujeito do jardim. Um homem de feições embrutecidas (que Roberto Fontanarrosa no prefácio chama de quase negras) que diz chamar-se Sherlock (como o detetive) Time. Sherlock explica que na verdade a torre era uma nave-espacial-armadilha, destinada a atrair humanos que seriam levados para servirem como cobaias em outro planeta. Ao ser flagrado por Luna no jardim, o que Time estava fazendo era desarmar o mecanismo da nave. Com isso, o torreão se torna (com certa autorização de Luna) sua nave “particular”.
Como disse, as histórias têm uma lógica episódica de “monstro da semana”: a cada número, Sherlock e Luna se envolvem em mistérios dos mais diversos tipos, demonstrando que há muito mais entre a terra e o céu (e além) do que supõe a nossa vã filosofia. Como eu li antes, Sherlock Time me ecoa muito Planetary de Warren Ellis e John Cassaday: é um mundo estranho, cheio de mistérios e armadilhas para os humanos, que só Sherlock parece conhecer e que, de alguma forma, parece ser o grande defensor da humanidade. Nós não sabemos quem é Sherlock Time ou do que ele é capaz, sequer se ele é humano – e Oesterheld não pretende mostrar muito mais do que uns breves relances. Como por exemplo na história publicada em Hora Cero Extra #7, de março de 1959: nela, Luna fica pistolito de sempre estar no escuro diante da pouca expressividade de Sherlock e resolve operar a torre-cosmonave por conta própria. Prestes a cair numa outra armadilha interplanetária, acaba sendo salvo por alguém com poderes mentais maiores do que o próprio planeta armadilha… possivelmente o próprio Sherlock. (essa história encontra-se duas vezes no encadernado. Acredito que por um erro – não da minha edição, porque consultei outro colecionador amigo – mas por um erro editorial mesmo. Isso porque a história que foi publicada em Hora Cero Extra #10, de junho/1959, tem uma imagem de “capa” diferente da história da HCE#7, e representa um quadro que não faz parte da HQ. Por isso lá no começo falei que eram 11 menos 1 histórias…)
Pra começar a falar da arte de Breccia, aqui o monstro dos quadrinhos argentinos (mas nascido uruguaio) começava a esboçar o estilo de claro e escuro que seria sua marca. O texto de Fontanarrosa na abertura chama atenção como já eram poderosas as sombras de Breccia neste primeiro momento: o casarão-armadilha, mostrado na primeira história, é medonho, suas sombras são pesadas, há texturas que aderem não só a Julio Luna, mas a nós mesmos, leitores. Descronologizando a produção de Breccia (pelo menos o pouquinho dela que tive acesso), por mais que tenha experimentalismo, técnica, estudo e amadurecimento, o gênio parece ter nascido pronto. Um pequeno elemento que reforça essa sensação é o pobre colecionador de antiguidades Eustaquio Mendéz, que busca a ajuda de Sherlock Time na edição #6 de HCE, de fevereiro de 1959. É impossível não reparar sua semelhança gráfica com Erza Winston, o antiquário que inicia toda a trama de Mort Cinder, e cuja estreia só se daria em junho de 1962. Ao criar Erza, Breccia afirmava ter pensando em uma versão mais velha de si próprio – versão esta que ele já “visualizara” desde 1959.
Por fim, sobre a edição, comprei-a a preço de banana, menos de dez reais numa banquinha no metrô. Tendo isso em mente, aliado à satisfação de conhecer um personagem bacana de velhos ídolos, já serve para descontar um pecadinho ou outro. Além da história bizarramente repetida, a edição (num formatinho quase Bonelli, com 20,7×14,7 cm) não faz justiça à arte de Breccia, espremendo muito os quadros, algumas vezes borrando os pretos… Esses defeitos se cagam de vez na história Hagan Juego (HCE #11, jul/1959): Sherlock decide contar uma história a Luna, passada em 2005, na qual um explorador registra acontecimentos em seu diário. O grande problema? Para os trechos de diário (e são muitos) Breccia lança mão de letra cursiva que… na impressão em tamanho pequeno ficam simplesmente ilegíveis! Se ler em castelhano já é de lascar o cano, fazê-lo enquanto se decifra a letra do explorador é realmente de foder!
Há outra compilação das histórias do personagem, editada pela Colihue, que tanto lá quanto aqui tem precinhos pouco amigáveis.
BÔNUS LAP: Se você se interessou por Breccia, Oesterheld e personagens misteriosos vindos sabe-se lá de onde, a Figura Editora, lá de Porto Alegre (se você não sabe quem são, as edições brasileiras de Sharaz-De, de Sergio Toppi, foram lançadas por eles) anunciou, em maio deste ano, que obteve os direitos sobre a obra máxima da dupla, Mort Cinder. A publicação vai seguir o modelo de trabalho que a Figura tem utilizado: Catarse e depois distribuição, mas com tiragens (infelizmente) pequenas. Como o trabalho da Figura é coisa de doido, convém ficar de olho pra não comer mosca.
É isso aí. Tomara que os trabalhos destes monstros ganhem mais espaço aqui na terra brasilis, assim poderemos sonhar com uma boa edição de Sherlock Time aqui na língua de Camões…