A gente lemos: Roseira, medalha, engenho e outras histórias, de Jefferson Costa
Ele conseguiu outra vez.
“Como assim ‘Outra vez’, Porco? Esse é o primeiro trabalho do Jefferson Costa fazendo roteiro e arte!“
Eu explico.
Conheci o Jefferson por conta daquele texto lá. O mais importante que acho que já escrevi aqui, ao mesmo tempo o que eu menos gostaria de ter escrito.
Aquele texto foi ao mesmo tempo uma espécie de “crepúsculo dos ídolos” e uma nova atenção, porque foi no processo de levantamento para escrevê-lo foi que vim a conhecer o Jeff e o Calça.
Foi um ganho, afinal.
Pois bem, quando enfim conversei pessoalmente com o Jeff, texto já publicado, foi no FIQ, quando comprei das mãos dele, do Lillo Parra e do Lucas Pimenta, meu volume de La Dansarina. Não lembro se cheguei a escrever sobre aquele gibi. Se não escrevi, deixo um resumo: hoje no braço direito, tenho tatuada uma cena daquela HQ. Posso não ter escrito sobre, mas que me marcou, me marcou.
Mas naquele dia, quando comprava o gibi sobre o qual eu não sabia absolutamente nada das mãos de seus produtores, o Jeff me disse algo mais ou menos assim:
“Espero que goste. ‘Feliz aniversário, feliz obituário’ era uma história do Calça que eu desenhei. Esse aqui é outra pegada. A história é meio minha também”
(posso ter errado uma palavra ou outra, mas o cerne foi isso aí mesmo)
Então eu digo com tranquilidade: o Jefferson Costa fez de novo.
La Dansarina me pegou naquele tom emocional de uma história relativamente pequena (um idoso que relembra a epopeia vivida, ainda rapazote, para enterrar a mãe, vítima da gripe espanhola no início do século passado), mas muito carregada de sentimentos, de afetividade. De uma certa mística interiorana (a Vovó benzedeira, o barqueiro negro, etc) que em determinado momento remeteu a experiências que pude localizar na minha própria história: menino pobre, de uma família negra, num bairro pequeno de uma grande cidade.
Evidentemente, não quero (nem posso) eliminar o trabalho do Lillo em La Dansarina. Lá também está o estilo de história que ele gosta de contar (spoiler: li um roteiro dele ainda não lançado e puxa!), mas lendo outros trabalhos, tanto do Lillo quanto do Jeff com outros parceiros (ou não, já já explico), é fácil ver como La Dansarina era “meio do Jeff também”.
Da parte dele, do Jeff, o que deixa isso evidente, escancarado, é justamente Roseira, medalha, engenho e outras histórias. Em seu mais recente trabalho, financiado pelo ProaC SP e lançado pela Editora Pipoca e Nanquim, Jefferson Costa apresenta parte da história mais ou menos remota dele mesmo. Da infância dos pais no interior da Bahia e de Pernambuco até, muito rapidamente, só um gostinho, da infância dele próprio.
De novo, é uma história relativamente pequena: nada de efetivamente incomum, sobrenatural ou mágico acontece com nenhuma das pessoas/personagens. Antôin Bunitin, avô paterno, sofre um infortúnio grave, Vaninha, a mãe, um acidente, mas não é nada demais, nada extraordinário. São coisas da vida que acontecem com todo mundo, com tudo quanto é família.
Mas essa “pequenez” é capaz de possibilidades gigantescas! No olhar para as “miudezas” da vida real (ou seriam os pequenos detalhes?), Jeff apresenta uma história com elementos universais: é como levar às últimas consequências o lance de que ao falar da sua aldeia você pode falar para o mundo.
Num ponto mais preciso, talvez a universalidade da história esteja justamente em seu caráter menos específico: por exemplo, na abertura e no fechamento do gibi, temos uma página com uma certa “árvore” (ou mandacaru, ou cana-de-açúcar) dos pais do Jefferson. São quadros simples: o pai e a mãe (vô e vô) em cima, ladeados, com o filho ou filha (o pai ou a mãe, ainda crianças) embaixo. Mas todos eles estão vestindo roupas bonitas, “roupa de domingo”, como dizia a minha avó.
Por um lado, essa montagem me lembra a árvore genealógica dos Buendía que tinha na guarda da edição de Cem Anos de Solidão que eu li, mas por outro lado, também me lembrou a casa da minha bisavó em Pirapora, que tinha uns quadros de família com mais ou menos essa mesma configuração e roupas: algo ao mesmo tempo altamente particular (fala com a minha memória pessoal) e ao mesmo tempo coletivo (fala com a do Jeff também, talvez com a sua, certamente com a da minha mãe. “Memória num é totalmente coletiva, nem inteiramente individual”).
E se falamos de arte, toda a arte do Jeff é um negócio muito próprio, e falar dela é quase chover no molhado, mas eu chovo: esse cidadão imprime um dinamismo muito particular nos quadrinhos que faz. É um movimento que não vem dos recursos típicos dos quadrinhos (como linhas de ação e perspectivas, por exemplo), mas de distorções propositais na forma da figura humana. É muito parecido com o que um tal de Jack Kirby fazia: braços e pernas se alongam conforme a necessidade, formatos de corpo descrevem caráter ou emoções dos personagens.
Isso porque a arte do Jeff não quer ser confundida com um cachimbo de verdade. É arte. Não é o retrato visualmente fiel da realidade. É arte. A gente sabe disso, mas esquece. Na arte do Jefferson em Roseira, medalha…, isso é tão explícito que até as sombras sabem. É arte.
Nessa do formato dos corpos, Jeff transparece uma pegada meio Cartoon Network, que na época dos “Cartoon cartoons” (de onde saíram Johnny Bravo, A Vaca e o Frango, Laboratório de Dexter, As Meninas Superpoderosas, etc) meio que transformou em regra n° 1 essa submissão da forma ao movimento e uma coerência entre personalidade e forma (não tô dizendo que o CN inventou esse recurso. Tô falando que fizeram dele a regra. Uma regra tão forte que já se expandiu para além duma única série de produções do canal).
Entretanto, foi lendo o “causo da volante”, contado pela velha avó na beira do fogo, que saquei a originalidade do trabalho da arte do Jefferson: é como se Flávio Colin encontrasse o Cartoon Network. Os traços são grossos e simples, flertam um pouco com a gravura do cordel, uma coisa meio estampa, mas o movimento… ah, o movimento! A vida! A ação!
Tá. Mas falar da arte do Jeff é chover no molhado, então bora falar do roteiro, que é a novidade.
Como disse, Roseira, medalha… conta histórias do passado de duas famílias que, como sabemos, comporão a família do próprio Jefferson. Ainda que a história parta do passado em direção ao presente (onde ela não vai chegar, pelo menos não nas páginas desse gibi), há uma pegadinha.
Em pelo menos dois momentos (um tanto transversais) o Jefferson brinca com o ponto de vista do expectador.
O primeiro deles, e mais óbvio, é a referência ao adinkra sankofa: um ideograma, típico dos povos da África Ocidental (sobretudo os axanti), que quer dizer algo como “voltar e buscar”, num sentido de aprender com o passado. O sankofa é o desenho de uma ave com a cabeça virada para trás, que nos é apresentado logo na primeira página do gibi:
(bônus lap: mas também há um desenho, muito comum em grades de portão e janela, que representa o sankofa).
Ou seja: Roseira, medalha, engenho e outras histórias fala do passado como tal, passado: é o Sr. Jefferson Costa, quarenta anos, premiado e pai de família, olhando para trás. Volta e busca. Se formos jogar no easy, no óbvio, é o autor voltando-se para o passado e lá buscando uma história.
Mas há mais do que isso. Não é só o Jefferson quem faz isso. Sua mãe, dona Vaninha, também faz.
Sim, “Dona” Vaninha. Não Vaninha, a menina cheia de nojos que vemos na trama. Mas Vaninha, mulher adulta, que também olha para trás.
Sei que cê tá pensando que é viagem minha. Talvez seja. Mas viaja comigo um pouquinho.
Há uma minitrama que atravessa grande parte da macrotrama, que é Vaninha, no açude, conversando com uma menina parecida com ela, mas com olhos diferentes. Essa microtrama tá fora do tempo. Ela começa num momento específico da trama central, mas se desloca para além dela. De tudo o que vemos no gibi, é a que mais claramente não está no passado, mas no presente, sendo rememorado.
Repare como o Jefferson é cuidadoso com as vozes dos personagens: há regionalismos e coloquialismos o tempo todo. As palavras são encurtadas, aglutinadas, engolidas.
Mas Vaninha e a Vaninha de olhos vidrados não. Elas conversam entre si com um texto um tanto mais estruturado, um pouco menos interiorano, mais perto um pouquinho do culto. Discutem vida, morte e memória. Destoam da trama de temas simples.
Pra mim, aquelas Vaninhas conversando é um pouco da Dona Vaninha, manifesta em forma infantilizada (mas comendo pipoca, falando de cinema), discutindo com a Vaninha criança, mas uma criança da memória. Se durante a trama toda o Jeff nos apresenta as pessoas do passado em si, vivendo-o como se fosse o presente (deles), no diálogo das Vaninhas ele apresenta alguém efetivamente lembrando. Sem truques, sem cordas, sem nuvem de fumaça para encobrir os defeitos, os furos: é tudo tão escancarado (pra mim) que a narradora interroga a narrativa – “peguei um punhado de furo” – porque, como diria Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”.
No fim, acho bonito que o Jefferson tenha escolhido estrear sua vida de roteirista com uma história sobre passado. Quer dizer, não só sobre passado, mas sobre herança, ancestralidade. É quase como se pagasse um tributo, como se, ao se preparar para um passo novo, voltasse a cabeça para trás. Se quando os caminhos se confundem é necessário voltar ao começo, de repente também é necessário fazê-lo antes de uma aposta.
Tanto é necessário que o Jefferson fez. Voltou ao passado e apostou.
Só tinha como ganhar.
(ganhamos todos)
Roseira, medalha, engenho e outras histórias, de Jefferson Costa. Editora Pipoca e Nanquim, 2019. 224 páginas. R$ 89,90.
Nota: 9/10