E se Daytripper, de Fábio Moon e Gabriel Bá, for um caso de plágio?
Na última GibiCon tomei ciência de uma notícia trazida por um leitor do MdM que me deixou angustiado e tenso. Num resumo: uma HQ curta, publicada originalmente em 2005 e que possuía elementos muito similares com a premiadíssima HQ de Fábio Moon e Gabriel Bá, publicada pela Vertigo em 2010, fazendo com que a segunda fosse um possível plágio da primeira.
A HQ copiada seria “Feliz aniversário, feliz obituário”, de Jefferson Costa (arte) e Rafael de Oliveira (roteiros), e lá mesmo em Curitiba tive acesso à história, num post publicado em 2012 no blog do Quadro a Quadro.
Foi estarrecedor. As semelhanças entre “Feliz obituário…” e “Daytripper” saltam aos olhos. E é a respeito delas que eu vou falar.
Primeiro, se você já leu Daytripper, vá até o link que eu postei acima e leia “Feliz aniversário, feliz obituário”. Vai lá, eu espero.
Voltei a BHCity One com a cabeça fervilhando, precisava tirar a prova dessa história. Veja bem: não é porque uma fonte, mesmo que confiável como é o caso do Lucas Pimenta do Quadro a Quadro, diz que algo está num determinado lugar que ele de fato está. O Pimenta poderia ter sido induzido ao erro por alguém que disse que “… Feliz obituário…” foi publicada na Front #16, e não tivesse ido conferir. Publicação de antologia da Via Lettera (durou entre 1999 e 2008, em edições temáticas, fora os especiais), a Front era uma revista cara e um tanto irregular: por isso mesmo, pouco consumida e conhecida. Para se ter uma ideia, pra escrever este post eu procurei a revista com alguns amigos colecionadores hardcore e nem entre eles achei. Por sorte, consegui encontrar a edição 16 nos encalhes de uma livraria aqui da cidade. Como eram temáticas, a edição 16 da Front tratava de morte. E sim: entre as páginas 83 e 94 estava, impressa em preto e branco, “Feliz aniversário, feliz obituário”.
Como eu disse, as semelhanças são inegáveis: dividida em 10 capítulos, Daytripper sempre termina cada um deles com seu protagonista, Brás de Oliva Domingues, morrendo em algum momento da sua vida (a HQ é não-linear). No primeiro capítulo, inclusive, ele morre no dia de seu aniversário. No último quadro de cada capítulo, um pequeno obituário (Brás os escreve/escrevia no jornal) contando de seu falecimento.
Por ser uma história curta, Feliz aniversário, feliz obituário não tem capítulos, mas situações, e ao final de cada uma vemos seu protagonista, Miguel Verdi, morrer. A narrativa é linear e, apesar de morrer no final de uma cena, na seguinte Miguel escapa da morte e segue a vida, apenas para morrer logo mais à frente. A trama se passa no aniversário de Miguel e, após cada morte, um obituário conta de seu falecimento.
Se essas semelhanças não fossem incômodas o suficiente, ainda tem algumas mais específicas: filho de um escritor, o protagonista de Daytripper sonha em ser escritor também, e tem em seu nome uma referência a um clássico da literatura – Brás, personagem principal de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Por sua vez, Miguel Verdi é músico, assim como Giuseppe Verdi, compositor de óperas como Aida e Nabucco. Tanto Brás de Oliva quanto Miguel Verdi têm como contraponto um amigo negro de cabelo afro (Jorge e Emílio, respectivamente). As duas HQs tratam da efemeridade da vida e a imprevisibilidade da morte. Claro, pesa a diferença de volume entre as obras, o que acaba obrigando Daytripper a ter mais tramas paralelas, mais situações e desdobramentos ficcionais, indo parar em outro lugar. Mas a essência das duas e alguns elementos-chave da execução dessa essência seguem sendo muito, mas muito parecidos mesmo. Na melhor das hipóteses, poderíamos dizer que “… feliz obituário” é uma proto-Daytripper, ou o argumento do que veio a ser Daytripper.
Pode ser um caso de uma bizarríssima coincidência? Pouco provável, mas não impossível. É aí que a coisa ganha detalhes mais complexos: quando fiquei sabendo da notícia, soube também que os autores de “…Feliz obituário” tinham sido alunos do Fábio e do Gabriel num curso da Quanta Academia de Artes em 2004, ocasião em que produziram a HQ e mostraram para ser avaliada pelos gêmeos. Sendo essa informação verdadeira, aí ficaria bem difícil descartar a hipótese de plágio. Era uma informação que precisava ser apurada e, depois de algum corre entre a galera do mundo dos quadrinhos, consegui os contatos do Jefferson e do Rafael. Era hora de tirar as coisas a limpo.
E veio a confirmação: de fato ambos fizeram um curso na Quanta em 2004, não somente com os gêmeos Bá e Moon, mas também com um grande número de quadrinistas diferentes, como Guazelli, Orlando, Fábio Yabu, Renato Guedes, Ivan Reis, Laerte e alguns outros (confirmei com o pessoal da Quanta: o curso se chamou “Quadrinhos avançado”, durou um ano e tinha aulas semanais, aos sábados). Cada artista ministrava pequenos workshops e os alunos deveriam montar um portfólio a ser apresentado aos professores. Segundo Rafael e Jefferson eles estavam começando a produzir juntos HQs, curtas, para serem publicadas em fanzines. “…feliz obituário” foi uma delas, e entrou pro portfólio do Jefferson, chegando às mãos dos professores do curso – Guazelli, Orlando, Yabu, Renato Guedes, Fábio Moon e Gabriel Bá…
Segundo os autores, ainda em 2003 pintou uma sondagem para publicar na Front aquela história, na edição sobre morte – o que veio a acontecer em 2005.
Mas a grande pergunta permanecia: por que, quando Daytripper saiu, os autores de Feliz aniversário, feliz obituário não botaram a boca no trombone? Segundo os próprios autores, medo – medo de serem taxados de aproveitadores, medo de embarcarem numa batalha judicial contra uma megacorporação (a DC/Time-Warner) e as infinitas despesas decorrentes disso. O lance era fazer carreira do zero, sem contar com os méritos de Feliz aniversário, Feliz… Daytripper.
Mas como nada fica muito tempo escondido embaixo do céu e em cima do chão, a história acabou vindo a público.
Caso encerrado? Não mesmo – como diz o Menino Maluquinho, cada lado tem seu lado e eu sou meu próprio lado, então não seria muito justo não ouvir o que os gêmeos Bá e Moon têm a dizer. A versão que eles contam sobre a origem de Daytripper nós já sabemos: que a história veio num banho, imaginando o aglomerado perto de casa e a pergunta: “E se lá der uma zebra e uma bala me acertasse?”. Pronto, “nascia” Daytripper. Mas… será mesmo? Por isso, entrei em contato com eles por e-mail e Twitter, sendo que o primeiro foi respondido pelo Gabriel Bá. A resposta, transcrita abaixo, diz seguinte:
Não lembro de ter visto esta HQ antes, mas fomos procurar e tem algumas semelhanças, essa coisa do personagem morrer, mostrar um obituário, depois continuar a história, depois morre de novo, etc… Podem ter mostrado e eu esqueci, mas não lembro.Gosto muito do Jefferson, ele é muito bom. O Rafael não acompanho tanto assim o trabalho.Mas claro que não tem nada a ver. Eu não levaria a sério.Além disso, tive a ideia inicial do Daytripper em 2002.Pra terminar, não é o personagem morrer várias vezes que torna o Daytripper no que ele é.Atenciosamente,Gabriel
Conforme já me referi antes, não é o fato de o personagem morrer várias vezes que faz Daytripper, mas isso é um detalhe importante na condução da trama. Assim como os obituários (que eu não me lembro de ser um recurso utilizado antes daquela forma nos quadrinhos), o fato do protagonista ser um escritor e ter seu nome remetendo a uma famosa obra literária, ou o amigo negro (com nome de músico negro) pra fazer contraponto. São pequenos detalhes, mas que acabam ganhando corpo e solidez quando são percebidos em duas obras diferentes, com um lapso de cinco anos de publicação entre uma e outra. A situação me soa complexa demais para não ser levada a sério.
Certamente podemos fazer conjecturas em outros sentidos, bastante improváveis, mas não impossíveis: por exemplo e se, invertida a ordem, foram os gêmeos que comentaram sobre o argumento de Daytripper, como um case, no workshop deles na Quanta e isso influenciou, de alguma forma, Rafael e Jefferson? Era uma possibilidade, mas que ambos descartam de partida. Segundo eles, a HQ já estava pronta quando participaram do workshop. O que sim, é um dado subjetivo e difícil de ser comprovado (“já estava pronta antes do curso“), mas que acaba tendo o mesmo (pouco) peso da afirmação do Bá de que a ideia de Daytripper surgiu em 2002. O que acaba tendo mais relevância com certeza são os dados objetivos: cinco anos separam a publicação formal de Feliz aniversário, Feliz Obituário e Daytripper. E num texto de maio de 2004 (“Dia do Julgamento”, aqui) Gabriel Bá não só cita o trabalho de Jefferson Costa como também a vindoura edição sobre morte da Front.
Eu queria muito fechar esse post com uma conclusão do tipo “é plágio” ou “não é plágio”, mas eu acho que nem precisa. São fatos poderosos, sólidos e, dizem, contra fatos não há argumentos. Fica uma sensação péssima, são artistas admirados, cuja produção eu e muita gente acompanhamos com atenção, não sendo o tipo de coisa que se esperaria deles, sobretudo no que tange ao seu trabalho mais elogiado e premiado.
Enfim, aí estão os dados, nobres bacharéis. Conclusões, cada um com a sua…