Hei, você aí! Pra ser bom precisa ser inesquecível?
Em algum momento deste ano (depois de sobreviver a 2020) decidi, de mim pra mim mesmo, que ia me dedicar mais ao escapismo.
Eu, que sempre gostei de obras complexas, reflexivas, decidi que ia tirar um pouco o pé do acelerador. Ok, eu continuo gostando de coisas assim, mas julguei que, no atual estado de coisas que estamos vivendo, era de bom tom ajudar meus psicofármacos um pouquinho.
Foi assim que me embrenhei, por exemplo, em retomar de onde tinha parado a leitura da Ms. Marvel (Kamala Khan) escritas por G. Willow Wilson. Ou abraçar as publicações “Teen” tanto de Marvel quanto DC. Aventuras super-heróicas típicas, herói-vence-o-vilão-e-salva-o-dia. Sabe aquele gibi regular, que líamos quando moleques, nos divertíamos de montão e, ao virar a quarta capa, provavelmente já tínhamos esquecido de tudo, loucos para viver nossas próprias aventuras? Pois é, isso aí.
(tá, minha consciência me dá um puxão de orelhas. Entre gibis despretensiosos e livros teóricos, encarei umas paradas meio pesadas. A biografia de Steve Biko; O Processo, de Kafka – cuja leitura arrastei por meses; e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, que passadas já umas duas semanas da leitura, ainda reverbera e me põe a pensar na vida. Mas quero dizer que estou investindo mais no outro lado da vida. Investindo mais em balanceamento. É como dizem, “um pouco de droga, um pouco de salada”, e estou favorecendo bem a salada, vai)
E tem sido uma boa estratégia. Pra começar, tenho dormido melhor. Faz toda diferença se fecho os olhos depois de ler sobre o apartheid sul-africano ou sobre um saxofonista que sofre um misterioso acidente e tem as mãos substituídas por cabeças de tigre. Em paralelo, tenho comentado mais nas internets sobre essas leituras. Não, não são grandes avaliações profundas sobre símbolos e significados. Não. São textinhos quase curtos, ali no que permite o Instagram, exclusivamente impressionistas: o que é, do que trata, o que senti lendo.
Foi nessas que li “Batman: Universo”, de Brian Michael Bendis e Nick Derington. Um arco em seis edições com a declarada intenção de recuperar o espírito da revista The Brave and the bold, cuja série original a DC Comics publicou entre 1955 e 1983.
The Brave and The Bold (ou O Bravo e o Audaz)
A Brave and Bold (Tb&tb) nasceu como uma revista cujo carro chefe eram aventuras do gênero capa e espada, com cavaleiros, bardos, vikings e robins hoods, como bem atesta sua logo com cara de coisa clássica, uma flâmula que tremula sob um vento vindo sabe-se lá de onde. Também tinham espaço nas páginas histórias meio militares ou de espionagem. Para se ter uma ideia, os Falcões Negros eram figurinha frequente, o Esquadrão Suicida original nasceu aqui.
A fase mais célebre do título, porém, começou na edição 28, de 1960: foi ali a estreia da equipe mais importante dos quadrinhos de super-heróis. Sim, ela mesmo: a Liga da Justiça, numa capa já icônica, com o segundo Lanterna Verde (Hal Jordan), o Aquaman, a Mulher-Maravilha, o segundo Flash (Barry Allen) e Ajáx, o Caçador de Marte, se batendo contra Starro, a estrela-do-mar alienígena gigante. A revista ficou sendo a casa da super equipe por mais dois números, mas a semente estava lançada: a Liga da Justiça surgiu do encontro de heróis que não necessariamente se frequentavam, separados em seus mundos próprios de aventura. O sucesso desse tal encontro ditou o que seria tomado como a grande marca de The Brave and the Bold: ser uma revista jam session – dois (ou mais) personagens da editora, não relacionados, se encontravam, viviam uma aventura e depois retornavam a suas bolhas.
Com o tempo, o estilo pueril das aventuras da Era de Prata que permeava as histórias de Tb&tb acabou sendo tomado como uma marca de estilo e em 2007, quando os geniais Mark Waid e George Pérez iniciaram a terceira encarnação do título, deram a ele esse ar descompromissado. Os heróis se encontram, vivem uma história divertida, leve e desprovida de muitas amarras cronológicas (coisa que era praticamente um fiapo nos anos 1960), depois voltavam a seus títulos regulares. Esta série, que começou em 2007 com um encontro entre Batman e Lanterna Verde (Hal Jordan), foi terminar em 2010 com um inusitado encontro entre os atrapalhados Quinteto Inferior (Inferior Five) e a Legião dos Heróis Substitutos (Legion of Substitute Heroes), por J. M. Straczynski e desenhos de Jesús Saíz. Esse mesmo espírito foi levado para a animação do Homem-Morcego de 2008: Batman: The Brave and the Bold. A série, que durou até 2011, se caracterizou por encontros entre Batman e outros heróis da DC, em aventuras episódicas, leves e divertidas.
De volta: Batman – Universo
Enfim, feita toda essa volta histórica, retomemos o fio da meada: Batman: Universo. Lançada originalmente em seis partes no ano de 2019 (Batman: Universe) e aqui num volume só de agosto de 2020, a trama começa com o Batman no encalço do Charada, responsável pelo roubo de um ovo Fabergé exposto no Museu de Gotham. De imediato fica claro que Edward Nigma está trabalhando para alguém, ao mesmo tempo em que ele não parece mais ser aquele Charada que estamos acostumados. A partir desse plot, Bendis levará o Morcego (e a gente junto) aos mais diferentes tempos e lugares à caça do ovo. Ele contará com a ajuda de alguns heróis da editora: o Arqueiro Verde na segunda edição, o Lanterna Verde (Hal) na terceira, Hal e Jonah Hex na quarta, o Asa Noturna na quinta.
Um posfácio da edição brasileira, assinado por Gabriel Faria, destaca aquilo a que eu já havia me referido: Batman: Universo é o retorno do espírito divertido e leve da Brave and Bold. É por isso que o Batman sorri. É por isso que ele faz tiradinhas engraçadas, e que seu relacionamento com o Alfred seja recheado de sarcasmo.
(é por isso que um dos vilões é o Charada?)
O clássico-memorável-inevitável-inesquecível
Ok, provavelmente todos nós lemos Batman: Ano Um ou o Cavaleiro das Trevas. Quem sabe A piada mortal ou Asilo Arkham: Uma séria casa em um sério mundo. Histórias tão memoráveis do Homem-Morcego que sabemos de cor, citamos roteiristas e desenhistas, quase como um cristão repete um versículo do Evangelho de Mateus. Com mais ou menos consenso, a maioria de nós considera que essas são Grandes Histórias. Assim mesmo, em maiúsculas. Histórias certamente mais importantes do que O caso do sindicato dos químicos (The Case of the Chemical Syndicate), onde o herói fez sua estreia em 1939.
Que essas histórias são geniais e inesquecíveis, poucos vão discordar. Mas o fato deles serem excelentes, faz automaticamente com que, sei lá, “Pague ou Morra” de Bob Haney e Jim Aparo (Tb&tb nº141, de 1978), seja ruim?
Em outras palavras: é preciso ser clássico-memorável-inevitável-inesquecível para que um gibi seja considerado bom?
Se sim, então estamos lascados.
Porque, pra ficar só no Morcego, desde 2002 a Panini (sua atual casa no Brasil) publica pelo menos UMA revista mensal de, vejamos… em torno de 100 páginas com histórias do personagem ou de seu universo. Se voltarmos aos EUA, o personagem é publicado, ININTERRUPTAMENTE, desde maio de 1939. Se só uma meia dúzia de histórias forem boas (portanto clássica-memorável-inevitável-inesquecível), então o quadrinho de super-herói é o maior case de sucesso de fidelização de comportamento através de reforçamento intermitente! Quer dizer, na esperança de topar inadvertidamente com a nova “Piada mortal”, milhares de consumidores vão mensalmente às bancas e comic shops comprar um gibi do Morcego HÁ OITENTA E DOIS ANOS! Como na maioria das vezes ele se frustra, ele mantém a chama acesa dizendo a si mesmo que “mês que vem vai rolar, certeza”.
Claro que não é assim.
Um gibi não precisa ser clássico-memorável-inevitável-inesquecível para ser bom. Numa produção tão longeva, as histórias verdadeiramente memoráveis só podem ser raras. O material regular, ordinário, é em sua maioria mediano. Quer dizer que são bons o suficiente para nos entreterem por algumas horas e nos esquecermos completamente até o mês seguinte, quando compraremos de novo, nos entretemos e vida que segue.
Nem luxo, nem lixo
Em paralelo, cabe lembrar que o mercado de quadrinhos brasileiro foi tomado por uma onipresença das edições de luxo: formato grande, capa dura, papel isso, verniz aquilo. O problema (além dos custos) é muito simples: se tudo merece tratamento luxuoso… então nada merece. O tratamento de luxo já não distingue nada.
Voltemos (mais uma vez) a Batman: Universo. Álbum de luxo, 176 páginas, capa dura, verniz aplicado na capa, com aquele papel brilhante de flyer de boate que a galera adora. R$64,00.
E a história? A história é boa. Os desenhos também são, e os diálogos.
Mas não pra isso tudo. Não para uma edição de luxo. É uma boa história regular, ordinária, li-me-diverti-mês-que-vem-tem-mais. O preço alto, o acabamento luxuoso, tudo isso grita para o leitor, antes que ele sequer retire o plástico que envolve o gibi, que o que ele tem em mãos é algo especial, algo incrível.
Não, não é. É só uma aventura do Batman atrás de um ovo Fabergé radioativo que o Charada roubou.
Mas veja, é uma boa aventura do Batman atrás de um ovo Fabergé radioativo que o Charada roubou!
A onipresença do luxo gera, na imensa maioria dos casos, frustração. Gente que vai dizer: “Era só isso? Que horrível”
Sim, era só isso. Mas te fizeram acreditar que era um negócio de doido, que ia mudar o seu entendimento de quadrinhos e nunca mais sair da sua cabeça.
Pelo contrário: é algo que vai esvaziar a sua cabeça ali por umas duas ou três horas. Que vai deixar o fardo um pouquinho mais leve porque bem, viver em geral é barra.
É pra isso que a gente precisa da fantasia, é pra isso que a gente precisa do Batman.
(e não. Pra ser bom não precisa ser inesquecível)