A gente vimos: O Rastro (2017) – sem spoilers
Pode-se argumentar que, parar decifrar os medos de uma sociedade, basta olhar para suas histórias de terror, seja qual for a mídia. A Europa, com seu horror vitoriano, tinha medo do passado; os americanos, da violação da ordem (seja natural ou social); os japoneses, da corrupção de suas normas sociais/valores culturais. Mas e o Brasil? Do que realmente nós temos medo? O Rastro, do diretor J. C. Feyer, aponta para uma resposta interessante, embora acabe se perdendo na sua proposta.
Na história, um médico em ascensão fica encarregado de supervisionar a transferência dos pacientes de um hospital público do RJ, que será fechado por falta de recursos. Como se não bastasse as pressões pessoais e sociais, ele ainda vai ter que lidar com o desaparecimento de uma das pacientes e e estranhos acontecimentos no local.
Filmes de gênero com pegada social são quase missões suicida. Já é difícil fazer um filme sem nenhuma pretensão, imagina então construir uma narrativa envolvente e coesa, que traga o que o gênero tem de melhor, adicionando camadas e crítica social. Corra! navegou por essas águas de forma magistral, e O Rastro consegue percorrer este desfiladeiro sem despencar, mas não sem tropeçar algumas vezes.
Quem espera ver um filme de horror sobrenatural vai se decepcionar. A história é principalmente sobre a decadência da saúde pública e suas consequências na vida das pessoas. Os elementos sobrenaturais são pontuais e o verdadeiro horror está no descaso e na negligência institucional.
Mas quem assistir o filme pelo que é, poderá tirar um bom proveito. A trama básica é bem contextualizada e os personagens possuem conflitos interessantes o suficiente para engajar o espectador. A contextualização sobre o estado da saúde pública é às vezes jogado na sua cara de forma fácil demais, mas considerando sua importância não só para a trama, mas para as motivações dos personagens, é algo que dá para deixar passar.
A atmosfera decadente do hospital dá o tom necessário para a história, que reflete não só a decadência da saúde pública no Brasil, mas a decadência da decência humana, quando vidas são usadas em um jogo onde as pessoas são o item de menor valor. Os elementos sobrenaturais servem como uma manifestação desse abandono da importância da vida humana, mas funciona melhor quando é uma ameaça invisível que parece iminente do que quando realmente algo se manifesta.
As atuações estão boas. É um alívio quando podemos ver bons atores em filmes como esse, onde a atuação é boa parte do engajamento na história. Rafael Cardoso e Leandra Leal funcionam muito bem como protagonistas, realmente parecendo pessoas comuns lidando com uma situação extraordinária. Outros atores clássicos como Claudia Abreu, Felipe Camargo e Jonas Bloch são pouco aproveitados, mas usam bem o tempo que tem. Nem todos os atores e atrizes funcionam, mas ao menos o núcleo principal é bem sólido. A fotografia e a ambientação são muito bons e carregam a maior parte do filme nas costas.
Um dos principais problemas, no entanto é a aparente falta de foco. Embora o primeiro ato siga muito bem, o segundo começa a tentar tratar de mais temas do que o filme consegue lidar, levando a um terceiro ato meio conturbado, onde fica difícil saber qual é realmente a conclusão que a história queria dar. Sim, todos os temas do filme (negligência institucional, corrupção, política, saúde pública, entre outros) são importantes na história, mas a tentativa de lidar com todos estes temas de uma vez em alguns momentos torna o filme carregado demais e o andamento da história acaba sendo prejudicado. Teria sido muito mais simples ter a ameaça pessoal como representação da situação que filme queria denunciar, sem telegrafar para causas para o problema.
Em alguns aspectos, não há nada de novo na história, e muitos pontos do plot acabam sendo previsíveis. Outros, no entanto, são até bastante interessantes e levam o filme para direções inusitadas. Há algumas reviravoltas inesperadas, outras nem tanto, mas que funcionam muito bem dentro da proposta do filme. O desfecho é até um pouco previsível, mas adequado ao que o filme se propunha e até funciona bem. O que talvez não tenha funcionado tão bem assim foi a troca súbita de um protagonista para outro perto do final do filme. Se essa transição tivesse sido mais sutil, teria funcionado como uma luva.
É difícil dizer se o Brasil tem algum tipo de identidade no que se refere ao terror, e se nossas histórias macabras realmente refletem nossos medos. Mas o tema do abandono, seja o estado abandonando seu povo, adultos abandonando suas crianças ou pessoas abandonando seus valores morais me parece um espelho promissor.
O Rastro pode não ser uma revolução no horror brasileiro, mas certamente merece a conferida. É um filme arriscado, e só por isso já tem seu mérito. Mas não assista o filme esperando um filme de terror mais típico, cheio de jumpscares ou que tenha o sobrenatural como foco. No filme, assim como no Brasil, os mortos são o menor dos nossos problemas; é com os vivos que temos que nos preocupar.
Nota: 7,216374