A gente vimos: Interestelar
(ATENÇÃO! Embora eu acredite que o texto não tenha spoilers pesados sobre o filme, ele revela detalhes que podem levar a deduções de pontos fundamentais da trama. Leia por sua conta e risco)
As melhores histórias de ficção científica normalmente são menos sobre ciência e mais sobre pessoas. Afinal, a ficção fantástica frequentemente diz mais sobre nós do que sobre a história que está contando. Se este é o caso, então Interestelar acerta em cheio ao fazer um filme humano sobre pessoas tentando entender o seu lugar no mundo (ou em outros mundos).
Interestelar se passa em um futuro não determinado (mas possivelmente 70, 80 anos à frente), onde os problemas climáticos geraram falta de comida e uma praga poderosa que destrói plantações. Isso obrigou a população mundial a regredir tecnologicamente e voltar seus esforços quase que exclusivamente para a agricultura. O problema é que a situação ambiental é tão precária que, com o tempo, a variedade de alimentos capazes de crescer tem ficado cada vez menor, até que se planta quase só milho, um dos únicos alimentos que ainda resistem.
Neste cenário, acompanhamos a vida de Cooper, um agricultor que deveria ter sido um engenheiro, trabalhando pela necessidade de sustentar sua família, mas frustrado por se ver obrigado a não realizar seu pleno potencial, coisa que ele não quer para os filhos. Mas é difícil esperar algo mais do futuro das crianças quando o foco da educação é na agricultura, e as aulas de ciência ensinam que o homem não foi à lua.
A vida de Cooper (e de sua família) muda radicalmente quando ele descobre coordenadas em uma anomalia gravitacional dentro da sua própria casa que o levam para uma base oculta da NASA, onde cientistas e engenheiros secretamente trabalham para salvar a humanidade indo embora do planeta.
A grande sacada de Interestelar é, na verdade, bem simples: usar a ideia da relatividade do tempo (que passa mais devagar quanto maior a gravidade*) para incrementar a experiência dramática. O que acontece com as relações humanas quando o tempo passa diferente para quem está no espaço e para quem está na Terra? Quais as consequências de se passar duas horas no espaço enquanto que, para seus filhos na Terra, se passaram 20 anos?
Quando Cooper e seus colegas de viagem vão para o espaço (depois de uma longa viagem até um buraco de minhoca na órbita de Saturno), eles possuem 3 planetas que podem ser sustentáveis para a vida. Mas em um deles não há mais sinal, um é muito longe e o que parece ser mais agradável está muito próximo de um buraco negro, o que faz com que o tempo no planeta seja na relação de 1:61320 (ou seja, para cada hora que os personagens passam no planeta, passam-se 7 anos no tempo da Terra). É claro que algo dá errado e eles ficam mais tempo do que poderiam, e quando conseguem escapar do planeta, eles perderam 23 anos aproximadamente.
As possibilidades narrativas da dilatação do tempo não são interessantes apenas no que se refere ao drama humano, mas também em relação ao suspense da história, que se alterna entre acontecimentos na Terra, onde os filhos de Cooper já estão adultos, e a ação no espaço, onde os personagens saíram do planeta Terra há apenas uns 2 anos, mas suas ações no espaço serão fundamentais para a sobrevivência do planeta.
O filme trata de tantos temas interessantes que seria impossível envolver tudo numa só resenha. Seria mais fácil fazer uma para cada tema. Há temas ambientais (como a mudança climática que levará a humanidade à extinção), diversos temas éticos (desde a mentira criada pelo Dr. Brand para incentivar o trabalho em conjunto, mesmo ele sabendo que só seria possível repovoar a Terra, e não salvar quem ficasse no planeta, até a mentira do Dr. Mann, feita no desespero apenas para ser resgatado, ignorando a própria salvação da humanidade), temas científicos (a ideia de diversas dimensões e de como, para seres pentadimensionais o tempo seria apenas uma outra dimensão física, fácil de ser percorrida para qualquer direção) e, é claro, temas mais metafísicos, como a ideia do amor como um sentimento que, assim como a gravidade, é capaz de transcender o tempo (o que é uma coisa meio sem noção de se dizer, mas enfim). Todos estes temas casam bem com a proposta da história, e criam um todo bastante contundente para o momento em que estamos vivendo, onde negação da ciência (e, consequentemente das mudanças climáticas) ganham mais as headlines do que a evidência real.
É claro que o filme não está livre de problemas. O tema do amor como elo de ligação que transcende barreiras dimensionais surge meio forçado às vezes (como quando Cooper joga para a audiência que a Dra. Brand é apaixonada por Edmunds apenas para dar a deixa de todo aquele discurso sobre o amor transcendente, mas que não tinha nem sequer sido mencionado antes na história) e o desfecho é bem desnecessário, no mesmo nível “informação demais” que o encerramento de O Cavaleiro das Trevas Ressurge. É como se o Nolan se esforçasse o filme inteiro para ser Stanley Kubrick (o filme tem elementos que são clara referência a 2001) para no final se entregar ao seu lado Steven Spielberg.
Além disso, quem quiser ser bem chato com o uso da física real no filme, poderá encontrar diversos pequenos problemas (como o fato de que, para o planeta em que eles desceram ter uma discrepância tão grande de tempo, a gravidade teria que ser centenas de vezes maior que a da Terra, o que impossibilitaria os personagens de entrar no planeta sem serem esmagados). Mas isso seria apenas implicância desnecessária em um filme que se esforça muito mais do que a maioria dos filmes de ficção científica para usar ciência real para contar uma história, e para mostrar como a ciência é importante, e talvez fundamental, para melhorar o mundo (ou talvez até salvá-lo).
No fim das contas, apesar dos vários temas, Interestelar tem duas mensagens muito claras, uma piegas e bastante batida, e outra que considero extremamente relevante. A primeira é a ideia de que a única coisa que leva os humanos para frente, mais do que qualquer ciência, tecnologia, política ou educação, é o amor. A segunda é a ideia de que não há ninguém, nenhum deus ou raça alienígena, capaz de resolver nossos problemas, a não ser nós mesmos. E que a única forma de salvarmos a humanidade do que quer que seja, é tomarmos a responsabilidade para nós.
O filme tem quase 3 horas de duração e está longe do formato blockbuster típico. Também não tem o mesmo ritmo de “thriller”, sendo muito mais contemplativo do que tenso (embora tenha cenas bastante tensas), o que certamente vai afastar uma boa parte da audiência acostumada a histórias sci-fi mais “eletrizantes”. No entanto, mesmo com seus problemas, Interestelar é um filme com orçamento de blockbuster (165 milhões) e com toda pinta de filme independente, e um filme raro hoje em dia, por tentar lidar com elementos da ciência real de um jeito singular. Não é nem de perto tão massaveio quanto A Origem, mas com certeza é bem mais relevante para a filmografia do diretor, e vale a pena ser assistido no cinema, especialmente por quem gosta de ciência (por que tem imagens sensacionais do espaço).
Isso é um buraco em 3 dimensões.Nota: 8,5
*É por isso que os satélites possuem relógios internos que se ajustam para acompanhar o tempo da terra, já que o tempo fora da Terra passa mais rápido que dentro dela. Sem esse ajuste, os GPS teriam uma margem de erro de quilômetros.