Como adaptar Superman para o cinema
Li sobre um filme do Superman que o Matthew Vaughn queria fazer e fiquei pensando por que parece ser tão difícil adaptar o personagem para as telonas. Por que o Superman parece nunca dar certo no cinema depois de Superman – O Filme? Para chegar ao cerne dessa questão, temos que descobrir o que é possível remover da história/personagem sem que se torne outra coisa. Melhor: o que é necessário manter numa história/personagem para que você ainda a reconheça?
TEMAS
Um cientista envia seu único filho ao espaço na esperança de salvá-lo da destruição do seu planeta. A criança cai na terra e é adotada por um casal, que descobre suas incríveis habilidades sobre-humanas. Ao crescer, ele se torna um super-herói conhecido como Superman. Esse é o mínimo para reconhecer a história. Mas, embora sinopse seja condição necessária, não é condição suficiente. Com o tempo, elementos-chave vão se estabelecendo (iconografia, alegorias, nomenclaturas) e, em 80 anos, Superman acumulou uma mitologia repleta de personagens, eventos e conceitos. Como decidir o que usar e o que deixar de lado?
Uma maneira de decidir é analisar os temas e alegorias incorporadas ao personagem ao longo das décadas. Apesar dele ter sido reformulado várias vezes, alguns tópicos são recorrentes. Em todas as suas versões, Superman é o defensor do cidadão oprimido. Na Era de ouro, o herói defendia a classe trabalhadora, oprimida pela Crise de 29; nos anos 80, era a classe média contra o empresário inescrupuloso; e, na atual série Supergirl, Kara defende as minorias, em particular os alienígenas que servem como alegoria para grupos como negros, comunidade LGBT, etc.
Esse papel social foi expandido também para seu alter ego, Clark Kent, que como jornalista representa a voz do povo. O trabalho não serve apenas para dar ao personagem acesso a casos (ou ele teria virado policial), mas também pela conexão humana. Como Superman ele é aspiração, mas como Clark Kent ele é inspiração, o cidadão comum que ouve os apelos das pessoas e mostra que qualquer um pode fazer a diferença. Essa também é a forma como o personagem “entende” a humanidade. Sem isso, como ele compreenderia pelo que seres humanos passam, uma vez que ele não é humano? A “missão” do Superman na Terra não seria completa sem Clark Kent. A falta de identidade secreta reduz sua conexão com a humanidade e compromete o personagem. E a profissão como jornalista investigativo é uma escolha deliberada.
E quanto aos malditos óculos, não dá para se livrar deles? Superman surgiu em uma época mais inocente e hoje em dia pode ser estranho vê-lo se disfarçar com um par de óculos, mas convenhamos que isso não é mais suspensão de descrença que um alien ser idêntico fisicamente a um homem caucasiano. Eles também servem para Clark se “misturar”. Se Superman é fisicamente perfeito, Clark, assim como todos os humanos, é imperfeito.
Associados ao personagem também estão os temas de imigração e adoção, que se cruzam por compartilharem alguns dos mesmos aspectos (se sentir diferente, sentimento de não pertencimento, necessidade de provar que merece estar onde está) e por isso andam de mãos dadas nas histórias do herói. A necessidade de provar que é digno é provavelmente o que faz Superman ser um campeão do bem que ao mesmo tempo respeita as decisões humanas ao invés de sair por aí derrubando ditadores ou se autoproclamando rei do mundo. Ao mesmo tempo, ele reconhece que possui uma bagagem cultural anterior que não só não pode ser ignorada como pode ser usada para ajudar/inspirar outras pessoas.
Inspiração e aspiração são outros temas que parecem fundamentais e que pedem por um tipo de narrativa bastante específica. Superman é o eterno otimista, sempre vendo potencial na humanidade, sempre acreditando num futuro melhor. Superman é idealista. Qualquer história do Superman que parta do seu ponto de vista terá que obrigatoriamente levar isso em consideração e incorporar à narrativa, do tipo de conflito ao desfecho, passando pelo vilão, pelo ritmo, tom e estética da história. Isso não quer dizer que o mundo em que o Superman vive tenha que ser perfeito, pelo contrário: Superman é quem precisa ser o foco de esperança em um mundo que precisa desesperadamente disso (senão, qual o sentido de existir um Superman?).
Os coadjuvantes também são desenvolvidos para tornar o personagem mais completo. Se o jornalismo permite ao Superman entender pelo que os humanos passam, são seus coadjuvante que dão a motivação para ele fazer algo pela humanidade, mesmo quando nossa espécie parece não merecer ajuda.
Johnatan e Martha Kent, os pais, são a bússola moral. É o que eles ensinaram ao personagem que o fazem se identificar mais com “Clark” do que com “Kal-El”. Perry White, o chefe, é a ética profissional. É quem mostra ao Clark a importância de se fazer as coisas do jeito correto, para que as matérias sejam apoiadas por informações seguras e nada possa ser usado para desmerecer o trabalho. Os pais do Clark e seu chefe são de certa forma opostos, cada um puxando o personagem para um lado e gerando dilemas éticos. Qualquer história sobre poder é, inevitavelmente, uma história sobre ética. Clark frequentemente tem que decidir entre a ética profissional e sua empatia. Ele deveria publicar uma matéria sobre um esquema político sabendo que a exposição pode no curto prazo afetar os menos favorecidos? Perry e seus pais talvez discordem sobre a melhor decisão.
Lois Lane, a parceira, é a personificação da própria humanidade. Possui diversas qualidades humanas e também alguns de seus defeitos. Lois Lane representa uma complexidade que é intrínseca à humanidade e é por isso que Clark se sente atraído por ela. Clark ama a humanidade, por isso ama Lois Lane. Lois mostra um pouco do que a humanidade tem de melhor enquanto seu oposto, Lex Luthor, mostra o que nossa espécie tem de pior. Superman tem motivos de sobra para odiar Luthor mas, ainda assim, como até um relógio quebrado está certo 2 vezes por dia, Luthor às vezes faz boas ações – mesmo que por interesse próprio. Se Lois Lane pode ensinar ao Clark sobre como é ser humano, Clark espera que um dia seja capaz de mudar Lex. Clark acredita que pode fazer Lex ver a humanidade como ele a vê.
Jimmy Olsen é frequentemente visto como um personagem menor, mas tem sua importância. Como estagiário aspirante a profissional sempre querendo provar seu valor no trabalho, Jimmy é um espelho do Superman, que enxerga no jovem alguém que ele era na mesma idade – e que em parte sempre vai ser. Clark se identifica com Jimmy, que existe para lembra-lo que ele é mais parecido com os humanos do que pensa. E para deixa-lo mais à vontade entre a humanidade, sabendo que existem outros com as mesmas apreensões que ele (nesse sentido, fazer Superman interagir com outros super-heróis possui papel semelhante, mas quem sabe eu faço outro textão só sobre isso)
ICONOGRAFIA
Com Superman, a combinação de azul e vermelho e o símbolo do “S” dentro de um escudo parecem ser os aspectos mais básicos. Não usar máscara se conecta, de certa forma, aos usar óculos, uma vez que Clark Kent é o disfarce. Além disso, ter um Superman de “cara limpa” ajuda na construção de uma imagem de honestidade e transparência. O penteado “pega-rapaz” torna o personagem facilmente reconhecível sem seu uniforme ou o símbolo.
Por último, um aspecto que também cabe aqui: superpoderes. Óbvio que ele precisa tê-los. Mas quais? A versão tradicional envolve ter mais de um superpoder e dentro de 2 critérios: habilidades que remetem ao auge da condição física humana (força, velocidade); e habilidades que desafiam as leis da natureza (vôo, visão de calor).
Todas as características citadas aqui emergem naturalmente de uma forma ou de outra a partir de temas-chave que as histórias do personagem mais trabalham. Um roteirista, escritor, produtor ou diretor que queira realmente fazer jus ao personagem deve levar em consideração tais aspectos, como eles se relacionam com o personagem e como são usados para explorar os temas ligados à história.
CASES DE REFERÊNCIA
Um case interessante de se analisar não é uma história de um Superman e sim da Supergirl. Na série, Kara Zor-El, prima mais velha de Kal-El, foi enviada à Terra para cuidar dele, mas sua nave se desviou do caminho e ficou preso na zona fantasma, onde o tempo não passa. Quando saiu de lá, caiu na terra quando Kal-El já estava crescido e se tornara Superman. Ele a ajudou a encontrar um novo lar e, mais tarde, a jovem acabou seguindo os passos do primo nas duas identidades: como jornalista na cidade de National City e como a heroína Supergirl.
Supergirl tem todos os elementos básicos descritos nesse texto. Mas, mais importante que isso, esses elementos se relacionam entre si, sempre orbitando ao redor da personagem e retornando para os temas clássicos que mencionei. A heroína está sempre lidando com dilemas éticos relacionados a sua natureza como um ser superpoderoso e, ao mesmo tempo, como jornalista humana. Além disso, trabalha a questão da imigração (que só tem sido acentuada) na forma da subcultura dos aliens refugiados que caíram na Terra. Seus coadjuvantes completam a personagem: os pais são a bússola moral, a irmã é seu modelo de humanidade e por aí vai. Além disso, Supergirl também introduziu Superman numa versão mais madura e segura de si, que faz jus a sua contraparte nos quadrinhos e nenhum dos dois “anula” o outro. A série tem seus problemas, claro, mas tem sido muito bem sucedida como adaptação do Superman. Mas é claro, criar uma história seriada, onde há mais tempo para desenvolver os arcos dos personagens é uma tarefa bem diferente de fazer tudo isso em um filme de 2 horas. Mas a essência está ali.
Outro case pode parecer bastante contraintuitivo, mas dá uma boa ideia do que se pode fazer: As Aventuras de Paddington. Nos filmes, Paddington não é um personagem com um “arco” – ele é o mesmo do começo ao fim do filme. Então, porque o filme tem 97% de aprovação no Rotten Tomatoes? Porque a história não é sobre como Paddington muda e sim como as pessoas ao redor mudam por causa dele. Isso é, basicamente, uma história do Superman. Nós podemos mostrar os conflitos internos do herói, suas motivações e frustrações, mas no fim do dia a história do Superman não é sobre como ele muda; é sobre como ele nos muda. Como ele nos faz melhor. Incrivelmente, esse é um tipo de abordagem que ainda não foi feita no cinema, nem mesmo no Superman do Richard Donner (embora esse seja talvez o mais próximo).
O título talvez tenha feito você pensar que o texto era sobre que tipo de enredo, histórias, qual arco adaptar ou qual estética adotar, etc. Mas, para fazer uma história do Superman que seja fiel à essência do personagem, nada disso é tão relevante quanto as pessoas pensam. Você pode fazer um bom filme (ou ruim) adaptando uma história específica, coletando diversos elementos de histórias diversas ou criando um enredo totalmente original. Pode ser uma história de origem, uma história episódica ou a última história. Uma história da cronologia ou um “elseworld”. Pode usar vilões conhecidos, desconhecidos ou inéditos. Pode ter ou não easter eggs, pode estar ou não dentro de um universo compartilhado. Tanto faz. O que realmente importa é que, qualquer que seja a história, ela deve surgir naturalmente dos temas que definem o personagem. Não são os paralelos com Jesus Cristo ou os microdetalhes que só fãs vão perceber que fazem uma boa história. Isso é água rasa. É preciso nadar mais fundo.
Adaptar Superman não é fácil. Mas nenhuma adaptação é. Nível de dificuldade não pode ser desculpa para descaracterizar o personagem. Basta entender quais aspectos são chave para uma narrativa robusta e completa, ter foco em como esses elementos se relacionam com o personagem e com a história e não esquecer da função que cada um desses aspectos desempenha na formação do personagem e nos temas que ele traz. Ou seja, “apenas” fazer a lição de casa.