Barbie é uma viagem sem volta (spoilers)

Aviso: este texto contém SPOILERS do filme da Barbie. TEJE AVISADO!

No meio de todo o sucesso de Barbie e de uma minoria bastante confusa projetando suas próprias frustrações no filme, não vi muita gente comentar sobre aquilo que considero a maior força da história: usar a discussão sobre gênero para ir além e explorar o que é ser humano em um mundo onde nada permanece.

O debate sobre o que nos faz humanos é antigo e segue sendo uma das grandes questões não respondidas. Enquanto para Aristóteles nossa humanidade estava entre o que somos e o que podemos ser, Leibniz acreditava que nossa humanidade era herdada, vinda de um poder superior. Por muito tempo, a ideia mais comum era a de que nós nascemos humanos: afinal, essa parece ser uma conclusão óbvia, não é mesmo?

Mas Jean-Paul Sartre chegou no século 20 com uma ideia interessante: não existe isso de “ser” humano. Ninguém “é” nada até que se torna algo. Para ele, a existência vinha antes da essência. Em outras palavras, é viver que nos torna humanos, e não o contrário. Isso é o que ficou conhecido na Filosofia como “Existencialismo”.

O existencialismo é mais do que um ponto de vista sobre a vida; essa ideia traz algumas consequências curiosas, especialmente para nossa noção de liberdade. Se você é o que se torna, a liberdade depende apenas de você. Não de um caminho predestinado por um ser superior ou de alguma ideia fixa do tipo de pessoa que você é. Você é livre para ser o que quiser porque a liberdade está nas suas mãos… mas também está nas suas mãos as consequências dessa liberdade. Ou seja, não adianta colocar a culpa em A ou B; se você é plenamente livre, você é responsável por suas escolhas e por suas atitudes.

Outra adepta do Existencialismo era a Filósofa Simone de Bevouir, que compartilhava das ideias de Sartre. Para ela, nossa existência só era autêntica se viesse da escolha espontânea e consciente, sem pressões externas de qualquer instituição ou autoridade. Nessa perspectiva, ela rejeitava qualquer ideia de que a gente fosse “destinado” a ser algo ou que nosso futuro já está escrito.

Mas, embora aparentemente individualista na noção de liberdade, Bevouir não acreditava que a existência humana deveria ser solitária; na verdade, acreditava firmemente que era necessário despertar em outros a busca da sua própria identidade para que juntos pudéssemos nos tornar muito mais do que a soma das partes.

Obviamente, este é o resumo do resumo do resumo sobre o pensamento desses Filósofos, mas não quero que esse texto fique mais longo do que precisa. Mas acho que já dá pra ter uma boa ideia.

E o que raios tudo isso tem a ver com Barbie? Ora, tudo.

Em Barbie, nossa protagonista vive em um mundo cor de rosa (literal e figurativamente): todo mundo é feliz, todos os dias são ensolarados, não existe privacidade (porque não precisa existir) e todas as pessoas, dos mais diferentes estilos e etnias convivem em harmonia numa festa eterna. É um mundo perfeito – que nunca muda.

Mas esse mundo vira de cabeça para baixo quando nosso mundo, o mundo real, passa a influenciar a Barbielândia com pensamentos sobre morte e depressão. Para entender o que está acontecendo, a Barbie original (chamada no filme de “Barbie Estereotípica“) precisa viajar ao nosso mundo para “consertar” essa dinâmica que está corrompendo a Barbielândia. Com ela, mesmo que a contragosto, acompanha Ken, o amigo/namorado que vive à margem na Barbilândia tentando chamar a atenção de sua amada – normalmente sem sucesso.

Chegando aqui, Barbie encontra um mundo completamente diferente, onde mesmo as atitudes que poderiam ser consideradas “positivas” em relação às mulheres contém um tom de agressividade, possessividade e controle – o oposto da Barbielândia. Já para Ken, o mundo real é um paraíso: os homens são respeitados e ele aprende que pode existir um mundo onde homens não se sentem diminuídos.

Só que o que deveria ser uma jornada para consertar a Barbilândia acaba se tornando um desastre pois, ao retornar, Ken traz toda a influência do “patriarcado” para seu mundo original e os Kens passam a dominar a Barbilândia e controlar as Barbies. Cabe à Barbie, com a ajuda de duas humanas (mãe e filha), a tarefa de restabelecer a ordem na Barbilândia para que tudo volte a ser como era.

Só tem um problema: nada nunca mais poderá ser como era – para o bem e para o mal.

A Barbilândia original não mudava porque permanecia em um ciclo. Mesmo com toda a diversidade, mesmo com toda aparente igualdade, o lugar tinha uma dinâmica que em parte não era tão diferente assim do mundo real. Cada Barbie (e Ken) tinha seu lugar pré-estabelecido: a Barbie escritora não era escritora E dona de casa; a Barbie doutora não era médica E cantora – e assim por diante. Era um mundo perfeito, se cada um se mantivesse dentro do papel a que lhe foi atribuído por uma autoridade externa, a Mattel – não o papel que elas mesmas escolheram.

No momento em que a Barbie estereotípica (e o Ken) teve contato com o mundo real, duas coisas aconteceram: ela adquiriu um novo conhecimento e obteve novas experiências. E estes são os dois ingredientes que levam ao invevitável: a mudança. A jornada da Barbie para o mundo real nunca iria trazer a Barbilância “original” de volta: esse navio já tinha zarpado no momento em que ela começou a pensar sobre morte. A única coisa que restava à Barbie, à Barbielândia e ao Ken era se tornar outra coisa.

O debate sobre questões de gênero contido no filme é importante e relevante, mas a genialidade da Greta Gerwig (que dirigiu o filme e, junto com seu esposo, o escreveu) não está em falar sobre o óbvio (que infelizmente ainda precisa ser falado), mas em usar óbvio para ir além e ter uma conversa profunda com o espectador sobre o que nos faz humanos. E a conclusão a que o filme chega não é muito diferente daquela que Simone de Bevouir e Sartre chegaram: são as nossas experiências que nos tornam humanos, e nos tornar humanos nos faz livres – mas também nos coloca amarrados às consequências dessa liberdade.

Longe de ser um filme unilateral como alguns gatos pingados afirmaram na internet, Barbie mostra que a questão de gênero é muito mais que um problema social: é um problema existencial. Não só coloca as mulheres numa caixinha que as impede de se tornar, de “ser”, como também impedem os homens do mesmo. A soberania do patriarcado no mundo real é um pesadelo para a mulher – mas é uma ilusão para os homens. Uma ilusão que custa nossa existência – e nossa humanidade.

E é exatamente isso que Ken percebe quando Barbie o convence de que a vida dele é mais do que passar sua existência em função de tentar ser adorado pela Barbie: ele é uma pessoa que pode ter suas próprias experiências, seu próprio caminho. E não precisa impor isso para ninguém, nem ter a necessidade de controlar nada – só precisa ser ele mesmo, só precisa ser Ken.

No fim das contas, o que salva a Barbilândia não é tentar conservar as coisas como eram, mas aceitar que a chave para a construção da sua identidade (e a dos outros) está na escolha de como agir com relação à mudança. E, no melhor estilo de Bevouir, Barbie não só vai atrás de construir sua própria identidade, como encoraja outros a fazerem o mesmo – incluindo os Kens. Barbie não obriga ninguém a segui-la como uma líder religiosa nem faz promessas frágeis como uma autoridade política: ela passa a entender que a única liberdade possível é cada um buscar sua própria identidade – e que isso não é um passo em direção à individualidade, pelo contrário; é o que nos aproxima da coletividade e da construção de algo maior que nós mesmos.

Em certo momento do filme, Barbie se desespera, querendo saber porque as coisas têm que mudar. Por que não podem continuar como eram antes (e, não vou mentir, é um desespero que de tempos em tempos me bate também). A resposta da personagem de America Ferrera é que é assim que as coisas são. Mas o filme nos mostra que há uma verdade muito mais acolhedora: as coisas mudam porque só assim nós somos capazes de continuar buscando quem podemos ser. Caso contrário, viveremos eternamente numa caixinha onde o que nós fazemos é determinado por outros – ou seja, viveremos a vida inteira como meros brinquedos realizando todos os dias as mesmas tarefas e acreditando que isso é felicidade.

No fim, Barbie é sobre mudança e como lidamos com ela. É a mudança que nos permite ter novos conhecimentos e experiências; é a mudança que permite que nos tornemos, de fato, humanos. Mas a escolha de “ser” humano será sempre nossa. E só nossa.