A Gente VimosDC

Apokolips War e a gratuidade desmerecida (spoilers)

Marvel e DC são dois universos de quadrinhos com origens bem diferentes, então não é à toa que alguns fãs sejam mais atraídos para um ou outro. Enquanto a DC surgiu de um ideal de heroísmo, justiça social e influência nas proezas dos heróis clássicos gregos, a Marvel tem em suas origens as histórias de horror. Por isso heróis dúbios e perturbados parecem se encaixar mais fácil no universo Marvel do que no DC, enquanto que personagens mais idealistas e ingênuos parecem se encaixar mais fácil na casa do Superman do que na casa do Hulk. Pra mim, essa diferença foi o que sempre me fez curtir ambas as editoras (sendo tanto fã de super-heróis quanto de terror), embora quando criança eu era mais atraído pela DC.

Diferente do que alguns podem pensar, esse “direcionamento” conceitual não limita esses universos; pelo contrário, apenas define sua identidade. Isso não significa que histórias que contradigam esse conceito não possam ser criadas; na verdade, são essas histórias que ajudam a solidificar o conceito base. Entre A Foice e o Martelo não é apenas “que legal seria se o superman fosse comunista”, é um experimento sobre o que faz o Superman ser o Superman. É testar e levar ao limite as pressuposições mais básicas sobre o personagem e ver o que sobra.

O mesmo pode ser dito das histórias onde o Superman “vira mal” (hoje infelizmente desgastadas pelo uso preguiçoso). Elas servem como estudo de caso sobre os princípios mais básicos do personagem. Não é uma crítica ao Superman bonzinho, é um espelho que reforça a grandiosidade do personagem original.

Por que estou falando tudo isso? Por que recentemente eu assisti a animação “Justice League Dark: Apokolips War” e essa animação me deixou tão puto, mas tão puto, que eu precisava falar sobre por que essa animação é um fracasso total (narrativa e conceitualmente falando).

Se você não assistiu a animação, aqui vai um resumo: Depois de obter informações de que Darkseid pretende invadir a Terra, Superman decide liderar um ataque preventivo à Apokolips. Mas Darkseid estava ciente desses planos e o ataque falha. A história pula para 2 anos adiante, onde Darkseid dominou o mundo e os poucos heróis remanescentes tentam se reorganizar para vencê-lo de uma vez por todas.

Num primeiro momento, nada demais, né? Soa como boa parte das histórias da Liga da Justiça. Inclusive lembra bastante um arco da Liga do Morrison nos anos 90. Então, qual é realmente o problema? Só porque a animação é ruim? Não é a primeira nem será a última animação ruim da DC. O problema é que ela não é só ruim, ela não tem absolutamente nenhum propósito narrativo.

Toda história é sobre alguma coisa. As melhores histórias são as que o autor sabe sobre o que é sua história e por isso toda narrativa é construída para reforçar, contradizer, amparar, comparar ou questionar essa coisa.  Eu não estou falando só de histórias super intelectualoides aqui, estou falando de qualquer história, do gibi mensal até a graphic novel, do filme dos Vingadores a Parasita. Toda história que vale a pena ser contada é sobre alguma coisa, independente se gostamos dessa história ou não.

Anos atrás, a DC fez uma animação adaptando a saga Flashpoint, Justice League: The Flashpoint Paradox (o visual é horrível, mas a história é curiosamente mais redondinha que a versão das hqs). A premissa é simples: Flash acorda numa realidade alternativa onde sua mãe está viva, mas fora isso é um universo muito pior que seu mundo original. Então o herói faz de tudo não só para consertar a realidade, mas para capturar o responsável pelas mudanças, que ele acredita ter sido Flash Reverso.  Acontece que, no fim das contas, não foi o Flash Reverso quem fez isso, mas o próprio Barry Allen, que voltou no tempo para salvar sua mãe. Assim como a saga nos quadrinhos foi o ponto de partida para a linha Os Novos 52, a animação também foi o início de um universo compartilhado de animações da DC. Justice League Dark: Apokolips War não só se passa nesse universo compartilhado como serve de “finale” para ele.

Flashpoint Paradox é sobre a relação entre poderes e responsabilidade. Quando maior seu poder, mais refinado deve ser seu senso ético porque as consequências dos seus atos são exponencialmente muito maiores (escrevi um pouco sobre isso aqui). Essa relação é algo que tanto Marvel quanto DC compartilham, embora trabalhem de maneiras diferentes. Enquanto na Marvel o foco costuma ser o quanto os heróis falham em ter uma ética refinada comparável aos seus poderes (por serem, psicologicamente, “pessoas comuns”), na DC os heróis possuem, normalmente, um refinado senso de moral que lhes permite tomar decisões melhores.

Mas é claro que um universo onde os personagens sempre tomam as melhores decisões sem nenhum questionamento não costuma gerar boas histórias. Por isso narrativas que desafiam o senso ético dos personagens e os colocam em dilemas impossíveis acabam surgindo com frequência. Queremos ver como nossos personagens favoritos se saem em uma situação onde não há uma clara resposta, pois quanto mais poderoso for o personagem, maiores serão as consequências dessa decisão. Esse é o ponto principal da animação de Flashpoint: mostrar por que é tão importante que os heróis da DC tenham um senso ético muito mais refinado que uma pessoa comum.

Uma história como Apokolips War tem grande potencial para criar esse tipo de desafio ético para os personagens. Num cenário de guerra total, os heróis deixam colegas morrerem em prol do bem maior? Salvam primeiro seus entes queridos ou desconhecidos em ameaça imediata? Se aliam a criminosos perigosos? Os fins justificam os meios? Como os heróis seguem em frente depois de perderem a guerra? Infelizmente, não vemos nem sombra de dilemas éticos desse tipo simplesmente porque essa animação é sobre… nada.

Não me entenda mal, muita coisa acontece na história. Personagens vivem, personagens morrem, personagens viram vilões, personagens voltam ao normal, personagens são desmembrados, personagens viram covardes, personagens viram heróis, mas nada disso tem qualquer impacto porque é completamente vazio. É uma gratuidade que se reflete no gore da animação, mas o problema está longe de ser o gore; o problema está no fato de que não há nada que o justifique.

Você pode pensar que essa animação é sobre os heróis tendo que superar suas perdas e renovar suas esperanças. Mas mesmo vencendo Darkseid, a humanidade ainda está condenada no final da história. Você pode pensar que ela é sobre o que acontece quando os heróis perdem e como eles lidam com isso. Mas a última cena é o Flash decidindo voltar no tempo pra “criar outro flashpoint” e resetar o universo, o que torna todo o esforço e sacríficio feito pelos personagens irrelevante. Então a história é sobre o que? Sobre como a gente pode começar de novo? Sobre os perigos de um ataque preventivo? Não dá pra saber porque não há muitas linhas narrativas que nos direcionem a lugares especificos, tematicamente falando.

Alguns podem ter reparado que há semelhanças com Vingadores: Ultimato. Heróis vão ao espaço enfrentar a ameaça, mas o esforço é vão e o vilão vence mesmo assim. Heróis remanescentes tentam consertar as coisas e há um elemento de viagem no tempo envolvido (apesar que mal dá pra dizer isso de Apokolips War já que, como comentei, isso não é parte da história, é só um “easter egg” nos 45 do segundo tempo). Mas a comparação só ressalta o abismo de diferença entre o filme da Marvel e a animação da DC.

Primeiro, Ultimato é sobre alguma coisa. É sobre sacrificar a si mesmo em prol de um bem maior, o que contrasta com a já conhecida frase do Capitão América em Guerra infinita “Não trocamos vidas”. Em Ultimato os personagens entendem que a única maneira de vencer é trocar vidas e decidem trocar a única vida que eles podem trocar com a consciência limpa: a deles mesmos. É claro que isso varia de personagem pra personagem (Capitão América, que sempre trocou sua “vida” pelo bem maior tem a chance de pela primeira vez retomar a sua), mas de uma forma geral, é isso.

Ultimato trabalhou com a ideia de viagem no tempo, mas criou estratégias para impedir que a história fosse um botão de reset e garantir que toda a carga emocional e todas as consequências dos acontecimentos anteriores continuassem valendo. Por isso deram um salto de 5 anos, para, por exemplo, dar ao Tony uma família e um “pseudo” final feliz. Assim, a condição de Tony para ajudar é que nada seja desfeito, apenas trazer as pessoas que sumiram de volta. Não é um “reset”, pois o que aconteceu, aconteceu, não foi apagado. Os sacríficios ainda valem. A viagem no tempo não é banalizada; não é algo fácil e não pode ser realizado com um simples estalar de dedos (viram o que eu fiz?). Os conceitos de viagem no tempo envolvidos na história são conquistados e merecidos ao longo da história.

Além disso, Ultimato entende que super-herói como “gênero” precisa ser, em algum nível, uma história sobre esperança, sobre otimismo. É a inspiração motivacional máxima: siga em frente, junte os pedaços e nunca desista. Sempre há algo pelo que lutar. Do contrário, porque você vai fazer uma história de Super-heróis? (Defendor é um drama independente estrelado pelo Woody Harrelson e é um ótimo exemplo disso. Consegue subverter a típica história de super-herói com um mundo cruel, realista e injusto e ainda assim fazer jus ao conceito).

Apokolips War decide por um caminho completamente diferente de Ultimato, quase oposto: inclui uma viagem no tempo fora da tela (pois não vemos o que acontece) que é usada só no final do filme – não é merecida nem conquistada durante a história, trata os personagens como completamente descartáveis, usa a violência gratuita apenas para chocar, constrói dramas artificiais que não se conectam com nada, faz os personagens tomarem atitudes fora da sua personalidade, justificam atitudes que seriam esperadas de certos personagens como parte de influência externa, vemos os personagens enfrentando uma batalha que parece perdida… e no fim ela realmente era perdida mesmo (que plot twist massa, hein?). Em outras palavras, Zack Snyder ficaria orgulhoso.

Aliás, é até injusto comparar Apokolips War com os filmes DC do Snyder. Ao menos os filmes dele eram sobre ALGUMA coisa. Nós podemos criticar a execução ou discordar da visão dele (o meu caso é ambos), mas é muito claro que havia um conceito por trás. Homem de Aço é sobre se sentir deslocado na sociedade; BvS é sobre o que a existência de um ser como Superman faz à psique da humanidade. Isso faz com que Apokolips War consiga realizar algo que eu não achei que fosse possível: ser PIOR que o Snyderverso (exceto Esquadrão Suicida, porque esse é páreo duro).

No fim, Apokolips War não é só um filme ruim, é um filme gratuito. Gratuito porque não tem razão de ser, gratuito porque não teve sua existência conquistada nem merecida. É apenas uma desculpa para acabar com um universo animado da forma mais espalhafatosa possível – levando com ele qualquer dignidade que esse universo animado tinha. A única coisa positiva que posso falar a respeito dessa animação – e desse universo animado – é: que bom que acabou. Já foi tarde.

P.S.: Alguém assiste a animação e me explica porque o filme se chama “Liga da Justiça Dark”. O único personagem da equipe que é protagonista na história é John Constantine. De resto, é quase uma história da Liga e dos Titãs (mais dos Titas até). Pra justificar a classificação etária e o gore, talvez?

Algures

Meu nome é Algures e tenho 41 anos (teria se tivesse vivo). Morri aos 13 anos tentando ouvir o Podcast MDM proibidão. Envie esse post para 20 pessoas para que eu possa descansar em paz. Caso não repasse essa mensagem, vou visitar-lhe hoje à noite e você vai se arrepender. Dia 15 de julho, Rafael riu dessa mensagem e 27 anos depois morreu em um acidente de carro. Não quebre esta corrente a não ser que queira sentir minha presença (atrás de você)

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo