A gente lemos: La Dansarina
A trama de La Dansarina tem como cenário algumas das dificuldades que permearam a capital paulistana no início do século XX, por conta da epidemia da gripe espanhola, a “Dansarina” do título. Amor e devoção perpassam a história do pequeno Petro, um dos poucos sobreviventes da enfermidade, em sua jornada para realizar um funeral digno para sua mãe. Numa trama mítica e cheia de brasilidade, Lillo e Jefferson contam uma história tocante de vida, morte e lealdade aos princípios.
É sério e sem babação de ovo ou exagero que digo que La Dansarina é, sem a menor sombra de dúvidas, a melhor HQ que eu li ano passado. Tocante, bem amarrada, cheia de uma verdade e uma sensibilidade raras de se ver. Como tudo o que eu comprei no FIQ, eu corri aos autores para pegar autógrafo e tudo, bater um papinho rápido (principalmente com o Jefferson, com quem eu nunca tinha conversado pessoalmente) e uma coisa que ele me disse marcou muito e pode ser sentida na HQ: esse é um trabalho realmente feito a quatro mãos. Poucas vezes eu me deparei com uma obra em que, sendo o desenhista e o roteirista duas pessoas diferentes, as coisas se completassem tão bem, numa simbiose mutualismo tão eficaz – quando o roteiro do Lillo não diz, a arte do Jefferson deixa claro e quando a arte não é tão óbvia, cabe ao texto te levar onde se precisa chegar. Se isso é normalmente raro, no nível em que acontece em La Dansarina é coisa que eu poucas vezes vi, principalmente no quadrinho brasileiro.
Falando sobre as duas artes em separado (o texto e o desenho), Lillo traz uma bela sacada em ancorar sua história num momento histórico real, não para discutí-lo ou descrevê-lo, mas para mostrar desdobramentos pouco óbvios, pouco comentados, desses eventos – mais ou menos o que Carlos Henrique Figueiras fizera em “A Carta”, ou a Ana Luiza Koehler em Beco do Rosário, para citar apenas dois exemplos. Nesse sentido, o grande lance é mostrar como o surto da enfermidade afetava não os mortos, mas aqueles que a ele sobreviviam e, nesse ínterim, contar o processo de desenvolvimento e a entrada de um menino numa cultura popular brasileira ainda predominantemente rural. Isso abre portas para a participação de personagens folcloricamente (ou miticamente, se preferir) poderosíssimos, como a Vovó ou o barqueiro Baltazar. É impressionante como, no surgimento desses dois na trama, o protagonista, Petro, cede naturalmente seu lugar no centro do palco só para retomá-lo logo depois, modificado pela passagem dos “coadjuvantes”. Tudo funciona de maneira muito orgânica, a leitura flui sem sobressaltos e a trama se encerra de modo que não há outro final possível para ela – seja nos fatos, seja no tom. Bacana também (e isso é comentado no posfácio) como cada personagem tem uma voz própria, com tiques e cacoetes, sem soar forçado ou estereotipado demais.
No desenho, Jefferson apresenta hoje um traço dotado de uma estética muito mais ligada à animação (tipo Genndy Tartakovsky e Todd Kaufman) do que aos ângulos Mike Mignola style, o que acaba dando uma lição e tanto: se eu lesse o uma novelização de La Dansarina e me perguntassem que estilo de arte devia pintar para ilustrá-la, eu nunca pensaria em algo como o trabalho de Jefferson, ao mesmo tempo que, depois de ler, não é possível pensar em outro estilo. Mesmo sendo “caricato” (na certa por isso mesmo), seu estilo conta muito bem a história e, em muitos momentos é justamente sua estilização exagerada que impede que a trama de enverede no melodrama, no pastiche. Ao mesmo tempo, é impressionante como sua arte sustenta e dá o tom emocional preciso a passagens inteiras, como quando Petro, já adulto, maldiz a morte por todos os que ela já lhe levou – uma sequência de duas páginas sem um único balão de texto! Ou quando o menino Petro é interrompido no sepultamento da mãe, e é obrigado a rever, constrangido, tudo o que pensava sobre a Morte: aqui texto e imagem atingem o seu ápice – os textos garantem que você entenda o que precisa ser entendido, enquanto os desenhos circunscrevem perfeitamente o que se deve sentir. É coisa linda de deus!
Enfim, se você acompanha as minhas resenhas, ou se não acompanha e só lê as notas, sabe que eu não costumo dar nota 10 pra nada. É um valor alto destinado a materiais inesquecíveis, geniais, antológicos. Daí você tira a base, porque eu não vou falar mais nada não.
(mentira. Antes de dar o serviço e a nota, quero bancar o sommelier de lombada e puxar a orelha do meu chégas Lucas Pimenta, editor do material: fio, que lombada é essa? Que troço sem graça e sem personalidade é esse? Como você me deixa um diamante desse quilate figurar na estante das pessoas desse jeito? Olha, que isso não se repita, hein?)
La Dansarina, de Lillo Parra (roteiros) e Jefferson Costa (arte). 140 páginas, colorido, R$40,00, Editora Quadro a Quadro.
Nota: 10