2015 tem muitos motivos para ser um ano memorável do ponto de vista das discussões de gênero.
É um ano em que, a despeito do nosso Fla X Flu político-partidário, nos dispusemos a discutir Política como nunca antes.
É ano de FIQ, que depois de enfrentar dissabores na edição passada com um babacão escrotizando as cosplayers, respondeu aumentando à índices inéditos em eventos de quadrinhos a participação feminina.
É um ano em que, numa discussão reverberada num episódio do AntiCast, a hashtag #AntiMachismoNerd ficou quase uma tarde inteira no topo dos TTBr.
Inclusive pode ser o ano em que o HQMix, “o Oscar do quadrinho brasileiro” fez o cartaz de divulgação mais babaca de sua história.
Usando a frase de efeito “venha bombar” (um mix pós-retrô que uniu a gíria com o símbolo do evento) a organização do HQMix achou interessante colocar no ar uma série de spots, porquissimamente produzidas, mesclando imagens diversas com a frase. Numa delas, vemos uma bomba de chocolate. Em outra, um frentista no posto de gasolina. Noutra ainda, Willie Coiote se apoia sobre um detonador de TNT. No ápice da brincadeira, um bodybuilder gigantesco (VENHA BOMBAR!); uma bomba peniana (VENHA BOMBAR!) e uma panicat de biquini, a bunda virada para o observador (VENHA BOMBAR!).
Numa postagem bastante ponderada, Aninha Costa da Gibiteria chamou atenção da organização do evento acerca da misoginia presente em algumas peças da campanha (e na baixa qualidade de todas, mas vá lá):
Carta aberta para a organização do Troféu HQMIX
Nessa quinta-feira, 3 de setembro de 2015, o Troféu HQMIX, considerado o “Oscar dos Quadrinhos e Humor Gráfico no Brasil”, publicou por meio de sua página oficial no Facebook (www.facebook.com/hqmix) uma série de imagens como convites para entrega do prêmio HQMIX 2015, que acontecerá no dia 12 de setembro. As imagens faziam referência à bomba que simboliza o logotipo do prêmio, todas acompanhadas do texto “Venha bombar!”. Entre as peças, foi publicada a foto da modelo Renata Molinaro de biquíni, que de costas exibe sua bunda para o espectador. A campanha ficou no ar das 10h00 às 14h30 do mesmo dia e as imagens foram deletadas após diversas manifestações contrárias à mesma, na página do evento, em perfis pessoais e em grupos de discussão.
Vivemos um momento em que o debate sobre a representação feminina no mundo do entretenimento alcança proporções globais e é um dos principais temas em evidência no cenário de quadrinhos independentes também no Brasil. Sejam motivados pela crítica de leitoras, jornalistas e quadrinistas, ou pelo bom senso, muitos sites, podcasts, editoras e eventos estão revendo e adaptando sua relação com o público, contemplando cada vez mais produções diversas. Por outro lado, o avanço do debate de gênero provoca respostas cada vez mais hostis e absurdas de uma parte conservadora e machista da cena e do mercado.
Nós quadrinistas, leitoras, jornalistas, grupos e entidades diversas que assinamos esta carta de repúdio, desejamos expressar nosso desconforto e indignação com a atitude do Troféu HQMIX. Utilizando-se da imagem não autorizada de uma modelo, em pose emblemática para a discussão da representação feminina nos quadrinhos, expressa que tanto não se sensibiliza às muitas articulações e críticas das mulheres quadrinistas e feministas, como reafirma seu poder e desejo em continuar naturalizando a representação compulsória de mulheres como objetos sexuais. Este episódio é ainda mais infeliz ao considerarmos que a modelo em questão demitiu-se de um programa de TV por sentir-se objetificada e humilhada, fato noticiado pela imprensa no início de 2015.
Os quadrinhos são um produto da cultura de massa e reproduzem discursos, sentidos, representações e valores da nossa sociedade. Há alguns anos, mulheres e pessoas diversas envolvidas na produção e consumo de histórias em quadrinhos lutam por mais espaço e representatividade. É inadmissível que um prêmio, que se propõe tão importante para o reconhecimento e valorização das HQs brasileiras, produza uma campanha desrespeitosa como essa, invisibilizando e ridicularizando a articulação das mulheres quadrinistas e outras agentes.
Aproveitamos para relembrar que o Trófeu HQMIX já havia sido recentemente criticado por reconhecer entre seus indicados do ano de 2015, apenas 13% de autoras, além de ignorarem iniciativas importantes para os quadrinhos brasileiros, como os eventos 1º Encontro Lady´s Comics e DesEnquadradas, a Zine XXX e o projeto Mulheres nos Quadrinhos. Seria esse o reflexo de ter apenas uma mulher no “Júri de Indicações” (segundo o site oficial www.hqmix.com.br)? O que nos parece, pela maneira como o evento vem lidando com as diversas manifestações, é que consideram os esforços, produções e falas das mulheres participantes da cena de quadrinhos, no mínimo irrelevantes, quando não dignas de retaliação.
Nós repudiamos absolutamente a atitude do Trófeu HQMIX, não aceitaremos que o universo dos quadrinhos permaneça restrito e hostil às mulheres, exigimos sermos tratadas com respeito e retratadas de forma mais inteligente e digna, lembradas e consideradas como agentes, produtoras e representantes importantes dessa linguagem. Exigimos que os produtores de eventos e prêmios, jornalistas, pesquisadores e autores de quadrinhos repensem suas atitudes discriminatórias e reconheçam as responsabilidades inerentes de se contar histórias.
Exigimos, por fim, uma retratação pública do Troféu HQMIX e a garantia de um comprometimento real com a promoção da igualdade e do respeito às mulheres.
Ana Luiza Koehler
Ana Recalde
Anna Mancini
Beatriz Blanco
Beatriz Lopes
Beatriz Perini
Cris Camargo
Cris Peter
Daniela Karasawa
Didi Helene
Emilio Baraçal
Fefê Torquato
Gabriela Borges
Jessica Daminelli
Jordana Andrade
Karina Goto
Lauro de Luna Larsen
Lovelove6
Lucas Ed
Luiza Meira
Montserrat Montse
Natalia Matos
Natalia Schiavon
Petra Leão
Rafael Rodrigues
Renata Gil
Renata Nolasco
Roberto Quirino
Sirlanney
Tais Koshino
Thaïs Gualberto
Aninha Costa – Gibiteria (www.gibiteria.com)
Carolina Ito – Salsicha em Conserva (https://www.facebook.com/salsichaemconservahq)
Collant sem Decote (http://www.collantsemdecote.com/)
Cuzcuz Literário (http://www.cuzcuzliterario.com.br/)
Editora Mino (https://www.facebook.com/editoramino)
Estídio Black Ink (https://www.facebook.com/BlackInk.Cursos)
Estúdio Complementares (https://www.facebook.com/estudiocomplementares)
Feira Dente (https://www.facebook.com/feira.dente)
FIQ – Festival Internacional de Quadrinhos (http://www.fiqbh.com.br/)
Girl Gang – Coletivo (https://www.facebook.com/girlgangcoletivo)
Lady´s Comics (http://ladyscomics.com.br/)
Manifesto Irradiativo (https://manifestoirradiativo.wordpress.com/)
Mina de HQ (www.facebook.com/minadehq)
Minas Nerds (https://www.facebook.com/minasnerds)
Monotipia (http://www.editoramonotipia.com/)
Mulheres nos Quadrinhos (https://www.facebook.com/MulheresNosQuadrinhos)
Nada Errado (https://www.facebook.com/NadaErrado)
Renegados Cast (http://renegadoscast.com/)
Revista Farpa (https://www.facebook.com/revistafarpa)
Rio.on.comics (https://www.facebook.com/rio.on.comics)
Roberta AR (http://facadax.com/)
Studio Seasons (https://www.facebook.com/studioseasons)
Supernova Produções (https://www.facebook.com/supernovahq)
Tayla Nicoletti – Debaixo do Farol Quadrinhos (https://www.facebook.com/debaixodofarol)
Zine XXX (https://www.facebook.com/pages/Zine-XXX/497725700334932)
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Às 22h, então, veio a resposta da organização do HQMix. Primeiro, na forma de uma publicação no perfil pessoal do Jal, um dos organizadores, depois na fanpage oficial, aquela mesma que postou a “campanha”. A resposta é indigna, não a publicarei aqui – segue o link para quem quiser ler. Em seu lugar, deixo uma imagem, porque eu acredito que, até pela semelhança física, o Jal acabou escolhendo usar a jogada “Cartinha da Dona Lúcia” para tentar se safar.
O que acontece? Olha, o HQMix derrapou. Como derrapou quando premiou o Danilo Gentili como “fã de quadrinhos do ano” e seguiu defendendo com unhas e dentes essa premiação, mesmo com o vendaval de críticas que recebeu por isso. E sabe o que a gente faz quando derrapa? Levanta, sacode a poeira, pede desculpas e segue. Ao contrário do que afirma o Jal em nota, é JUSTAMENTE a história do prêmio e sua relevância que, por um lado, surpreenderam o mundo da HQBr (“Como assim essa campanha tosca foi feita pelo HQMix? Será que hackearam a página deles?”) e, por outro, permitem que o prêmio erre, reconheça o erro e retome a caminhada. Mas perceba: é preciso reconhecer o erro, coisa que a nota não faz. Na verdade, tudo o que a nota oficial faz é dizer que errad@s são os que acusaram a premiação de machista, porque seus organizadores não são.
E é possível que não sejam mesmo! Mas foi um ATO machista, a qual todos nós, criados numa sociedade orientada por essa forma de pensamento, corremos o risco e cometer. Em 2015, após tantas reflexões, tantas discussões rolando sobre o assunto, tanta produção comandada por garotas, já é chegado o tempo da maturidade de todos nós, para conseguirmos separar atos de história. Contra todas as expectativas, essa derrapada poderia ter sido um grande momento do HQMix, o momento de discutir esse machismo enraizado e silencioso e tentar superá-lo. Mas não. Foi o momento em que o “Oscar do quadrinho brasileiro” decidiu mostrar que, se “o mar da História é agitado”, como diria Maiakovsky, eles acabaram deixando o barco virar. CONSCIENTEMENTE!
No fim, fico pensando o que a histórica Nair de Teffé faria se fosse homenageada por uma premiação cujo convite fosse o de uma panicat de bunda pra lua. Ou se não está na hora de criarmos o “MdM Chégas Awards”, pra premiar os trabalhos mais relevantes da chégosfera quadrinística. Se fosse o caso, certamente essa campanha do HQMix ganharia o prêmio “Rosquinha de Merda do Ano” e com louvor!