Muito se tem falado em representatividade no mundo dos quadrinhos – a coisa não é de hoje.
Foi motivo de polêmica quando fizeram o Alan Scott da Terra 2 (pós-N52) homossexual.
Foi polêmico quando Miles Morales, um garoto negro com ascendência latina, assumiu o manto do Homem Aranha ultimate.
Foi polêmico quando escalaram atores negros para interpretar o Rei do Crime, o Perry White e o Jhonny Storm no cinema.
Nas últimas semanas, foi extremamente polêmico que a Marvel tenha escolhido uma garota (!), negra (!), para assumir o manto do Homem de Ferro.
Algumas decisões se mostraram acertadas, outras não. Algumas até indiferentes para as tramas. Outras mudanças, praticamente do mesmo tipo, aparentemente não geraram qualquer efeito nos leitores (não, quase ninguém reclamou quando a Capitã Marvel virou o alter-ego de Carol Danvers, loira, quando era originalmente o título de Monica Rambeau, uma mulher negra. Também tem me parecido algo longe de gerar frisson o recente branqueamento de Roberto DaCosta, o Mancha Solar. Vai entender…).
Pois bem, o fato é que representatividade importa? Sim, importa. Eu poderia me limitar ao meu exemplo pessoal, que praticamente até a idade adulta só criava personagens caucasianos – nas pequenas histórias que escrevia ou nos diversos RPGs que jogava. Eu poderia citar aquela célebre frase da Whoopi Goldberg quando viu a Ten. Uhura na Tv pela primeira vez. Ou quando Leslie Jones conta ter visto a própria Whoopi Goldberg na Tv. Mas eu quero falar mesmo é da Mulher-Maravilha, personagem de minha especialidade, e que, segundo o roteirista e ganhador do Eisner Gerard Jones (no seu livro Brincando de Matar Monstros, aqui lançado pela Conrad em 2004) é abandonada pelas meninas após o jardim de infância. Nesse sentido, a regra é clara: não basta ter a representação visual, é preciso que ela fale com seus leitores, com o grupo alvo minoritário ao qual ela pretende estabelecer relações.
Parece batido, mas a dinâmica de gueto que Dennis O’Neil imprimiu em John Stewart ou Chris Claremont colocou em Luke Cage, ambos nos anos 1970, deram seu recado. O mesmo se pode dizer do Miles Morales de Michael Bendis, que muito espertamente sacou que o “nerd” dos anos 201X, o discriminado da escola não é mais o garotinho branco mirrado de óculos fundo de garrafa: é o garoto negro que tenta escapar da criminalidade vivendo no meio dela, com seu amigo gordinho igualmente excluído. Ao fazer isso, cada um desses autores resgatou a mágica dos quadrinhos de super-heróis, que é oferecer a alguém desvalido um símbolo de força, de vitória maior do que ele próprio, maior do que os desafios. Foi assim que os jovens judeus Siegel e Shuster, no pós crise de 1929, criaram o Superman. Foi assim que o Rei Jack Kirby sublimou a violência que circundou sua infância.
Pois bem, tô dizendo isso tudo para contar que na última semana eu li os sete primeiros números de duas séries que geraram algum zum-zum por conta de mudanças em prol de representatividade. Sim, eu me refiro a All-New Captain America (com o Falcão vestindo o uniforme estrelado) e a nova série do gibi do Thor, com A Thor estrelando o título.
As duas séries carecem de problemas similares: a impressão (incorreta) de que só mudar basta.
Veja bem, vamos nos focar primeiro no Falcão América. Por algum motivo inexplicável, a Panini resolveu começar a publicar o personagem aqui a partir de uma minissérie, Fear Him, que lá fora foi publicada, segundo as datas informadas pela própria Panini, quatro meses após as mudanças no título. No arco, o Falcão América e seu parceiro, o Nômade (na verdade Ian Rogers, garoto trazido por Steve da Dimensão Z), enfrentam um criminoso cujo trabalho é gerar (e se alimentar) do medo alheio. Seu nome? Espantalho (¬¬). Com roteiro escrito a quatro mãos por Rick Remender e Dennis Hopeless (esse nome é praticamente um presságio), a história é terrível. Personagens chatos, uma trama besta e sem pé nem cabeça, e pior, a sensação constante de que os autores decidiram decalcar o Batman & Robin do Grant Morrison: o ajudante petulante e violento que se sente mais capaz de assumir o posto principal do que o escolhido para isso – e por esse motivo o desobedece e desrespeita; e o herói principal, todo correição e princípios, que precisa lutar ao mesmo tempo que tenta controlar seu parceiro. Para ajudar mais um pouco, a arte dessa série está muito abaixo da crítica. Desconhecidos Mast & Geoffo cuidam dos storyboards enquanto Szymon Kudranski assina os desenhos e a arte-final. O troço é tão medonho que o Nômade usa como arma não passa de uma daquelas latas de tinta cheias de cimento com um cano de ferro colado que a molecada usava pra fazer trave nas peladinhas de rua. A história durou quatro números, mas eu abandonei no segundo, quando apareceram os “Meninos Perdidos” do metrô.
Quando enfim começou a publicação do título do personagem, com Rick Remender no roteiro e Stuart Immonen na arte, a coisa melhorou bastante. Remender malandramente resgata o passado de Sam Wilson e, nas palavras da Caveira Vermelha, lhe expõe como ele foi talhado para dar errado, vivendo órfão no Harlem. Sim, a dinâmica entre Sam Wilson e Ian Rogers continua chata de matar, mas bem… ela dura pouco até o momento. Remender faz do Falcão América alguém que precisa sempre se provar, como muitos negros em posição de destaque mundo afora: se provar digno do uniforme que veste, se provar digno da memória dos pais. Isso me faz ter vontade de comprar o próximo número.
Considerando a radicalidade da mudança, a Thor teria, em tese, mais a oferecer. Com suas histórias escritas por Jason Aaron, o novo título do asgardiano começa com o retorno de Odin a Asgard (agora Asgárdia) republicanamente modificada por Freya, a mãe suprema, que governou na sua ausência. Entre as muitas mudanças que o seu pai supremo se depara está um “inerguível” Mjolnir, que nem o próprio Thor Odinson consegue levantar. O Martelo Uru acaba caindo nas mãos de uma mulher misteriosa, que se torna a nova deusa do trovão. Apesar da excelente premissa, Aaron escolhe amarrá-la num inexplicável clima de humor juvenil, com personagens descaracterizados (seu Thor Odinson é nada mais que um revival do jovem Thor, irresponsável e beberrão, criado salvo engano por ele mesmo no arco Thor: God of Thunder, aqui republicado nos encadernados O Carniceiro dos Deuses e A Bomba Divina). Seus vilões são maus por serem maus, como Dario Agger, o dono da petrolífera Roxxon, ou o asgardiano Cul Borson. O ápice do humor preguiçoso chega em Thor Annual #1 (Novíssimos Vingadores #006), quando Jason Aaron (com o Rei Thor, de O Carniceiro), Noelle Stevenson (com a Thor) e CM Punk (com o Jovem Thor) nos entregam histórias de um “humor” constrangedor (ok, a história do Rei Thor quase não tem humor. É só constrangedora mesmo). Toda a série caminha tão mal até aqui que me faz lembrar a passagem de Gail Simone no título da Mulher-Maravilha, quando a princesa das amazonas dividia o apartamento com Gorilas Albinos.
O que eu quero dizer com este post é que o choque pelo choque não vale de coisa nenhuma. Mudar a etnia por detrás do Capitão América ou o sexo de Thor só serve para gerar burburinho vazio se as histórias não forem dignas da grandiosidade da mudança. Será que esse pessoal realmente pensa que a única forma de garotas se interessarem por super-heróis é lhes dando historinhas bobinhas de bem (óbvio) contra o mal (igualmente óbvio)? Será que esse pessoal não saca que determinadas questões são melhor entendidas (e descritas) por quem as conhece, como tem feito G. Willlow Wilson na nova Miss Marvel?
Sem esse tipo de percepção vivida (ou sem autores que consigam internalizá-la, como fez Bendis no Homem Aranha Ultimate) tudo que se consegue é o burburinho. E burburinho por burburinho é igual a nada. Isso nós já aprendemos com as “mortes” de personagens famosos. Porque representatividade precisa ir além de mudar a paleta de cores de um personagem ou o formato em que se desenha seu corpo. É preciso representar de fato (talvez até apresentar mesmo).
Nesse sentido, ainda temos MUITO a caminhar quando se fala de representatividade e quadrinhos de super-heróis. Espero estar vivo para ver essa caminhada acontecer…