Se você estava deste lado do globo terrestre, acordado e ainda se interessa por histórias em quadrinhos e coisa do gênero, há de saber que entre os dias 22 e 26 de maio aconteceu em BHCity One aquele que é o maior evento de histórias em quadrinhos da América Latina: sim, eu falo do meu, do seu, do nosso, do de todo mundo Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, o FIQ-BH.
Foi a 12ª edição do Festival, que compõe o calendário de eventos da cidade oficialmente desde 1999. Cujo recorde de público foi atingido em 2011, com mais de 140 mil visitantes.
Na edição deste ano, o público estimado foi de 45 mil pessoas.
O evento que desde 2022 (a 11ª edição, já que ele é bienal, se você não sacou) distribui vales livro para as e os estudantes de escola pública que visitam o evento e que, assim, podem adquirir gibis dos artistas expositores (escrevi “as e os estudantes” porque a gente tem mania de escrever “crianças e adolescentes” e esquece que SIM! o FIQ também recebe visitas de estudantes da Educação de Jovens e Adultos, o EJA, que também têm acesso ao vale livro, ainda que sejam um volume muito menor de visitantes). Neste ano de 2024, foram distribuídos mais de 3000 vouchers, e com uma novidade: desta vez as professoras e professores também receberam! Ou seja: cada estudante recebeu um voucher de R$40,00 e cada profissional, um de R$60,00,
(ok, no preço que o gibi anda, não dá pra muita coisa. Mas dá pra alguma coisa, que não raramente é tudo o que o pessoal consegue acessar)
Acontece – e isso pode ser que você não saiba, mesmo se estivesse neste lado do planeta, acordado e interessado em gibi – que o FIQ-BH também foi vítima de ataques desonestos por parte de dois vereadores conservadores religiosos de BHCity One. A acusação? De que o FIQ-BH permitia o acesso de crianças e adolescentes a conteúdo impróprio, de violência, terror e, principalmente, pornografia, ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA.
Essas pessoas maravilhosas fizeram videozinho pra internet, um deles chegou a registrar boletim de ocorrência e, não satisfeitos, pediram uma audiência pública na Câmara Municipal para discutir o assunto.
Não vou aqui colocar os links para os vídeos de pânico moral dessas pessoas maravilhosas. Cê acha por aí com certa facilidade, e daqui a pouquinho também te darei um canal procê acessar o que quiser pra ter o contexto mais detalhado.
Mas tem umas coisas que eu gostaria que você ficasse sabendo lendo só este texto aqui. Uma delas é de que eu, eu mesmo, fui um dos curadores do evento. Pela segunda vez dividi essa missão e essa responsabilidade com a grande Amma Fonseca, ilustradora e quadrinista (uma das fundadoras do falecido Lady’s Comics, um trampo pioneiro no resgate e reconhecimento da produção feminina de quadrinhos, além de ter desenhado Bertha Lutz e a Carta da ONU pela Veneta, com a Angélica Kalil, e mais outras tantas coisas).
Outra coisa que eu quero que você saiba – e que você pode se certificar vendo os vídeos dos dois parlamentares, é que as acusações deles se baseiam em possibilidades e ilações: tinha material impróprio para menores no FIQ? Tinha. Tinha crianças circulando pelo Festival? Tinha também. Essas crianças possuíam vales-livro? A resposta é mais um sim. Looooogo, na cabeça dessas pessoas maravilhosas, a única consequência lógica é que as crianças obviamente usaram os vale-livro para comprar gibi pornô. Fim.
Entretanto, apesar da óbvia desonestidade e fragilidade das acusações, essas coisas repercutiram e geraram consequências formais, como a já citada audiência pública (que aconteceu no último dia 05, quarta-feira). Além de mim e da Amma, foram “convidados” para a sessão a Secretária Municipal de Cultura, o Secretário Municipal de Educação, a Diretora do Instituto Periférico (organização da sociedade civil – OSC – vencedora do chamamento público para realizar o FIQ), além de alguns conselheiros tutelares (que não foram).
Se você quiser, pode assistir a audiência pública na íntegra por este link aqui. Mas eu aconselho que tome um Vonau™, Dramin™ ou outro antiemético da sua preferência antes. É um showzinho de horrores.
Como imaginamos que o objetivo da audiência pública, muito antes do que atender qualquer interesse cívico, era na realidade para gerar cortes e bombar nas redes de fanatizados (afinal de contas, 2024 é ano de eleição municipal, e certas figuras têm que garantir o leitinho das crianças vindo diretamente das tetas dos mandatos públicos), consideramos que a melhor saída era nos manifestarmos por escrito. Então redigimos uma longa carta aberta sobre o assunto, que você pode ler aqui. Como disse, ela é longa, mas se o assunto te interessa, recomendo mesmo que leia.
Antes de acabar, tem mais umas coisas que eu gostaria de te dizer:
1) Posso te garantir, que não só eu, como Amma, Gabriel, Afonso e todas as pessoas envolvidas com o FIQ (cê pode ver abaixo o tanto de gente que é), temos o maior respeito pela infância no Brasil. Seja por convicção moral, seja por um somatório entre convicção e atuação profissional. Acreditamos que isso move grande parte das quadrinistas e dos quadrinistas que vão ao FIQ. Por isso, nos entristece profundamente, além da falsidade das acusações, que as crianças circularem, sob a supervisão de adultos, em um espaço de celebração da cultura que contém alguns (pouquíssimos!) materiais impróprios à idade delas (e que elas não acessam) gere mais comoção dos agentes políticos do que a existência de crianças em situação de rua às portas do evento, sem condições de terem absolutamente o mínimo para viverem com dignidade. Sim, o fato de existirem crianças em situações mais graves não faz com que eventuais violações menos graves deixem de ser importantes, não é isso que estou dizendo. O que digo é que a sanha populista é só isso: uma sanha populista sem comprometimento verdadeiro com a realidade.
2) Um dos compromissos do Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte é a promoção da diversidade. É um compromisso fundamental que está no centro da razão de existir do Festival. Portanto, para nós, é completamente absurdo que narrativas LGBTQIAP+, trans, afrobrasileiras, feministas, enfim, tudo o que dê visibilidade a pessoas reais e que não represente delito tipificado, sejam consideradas impróprias só por isso. No que couber a nós, essas publicações devem E TERÃO sempre espaço no Festival. E, inclusive, apanhamos por conta disso: muita gente ficou revoltada quando saíram os resultados da seleção para as mesas (que é uma tarefa que não cabe à curadoria, mas da qual quero falar assim mesmo) dizendo como assim eu não sou relevante o suficiente para ser aprovado? Quem é melhor do que não-sei-quem para ser aprovado/a e não-sei-quem não ser? Essa questão não diz respeito ao trabalho de não-sei-quem, mas à necessidade de garantir espaço também para quem nunca teve espaço. Gente do Amapá que nunca tinha conseguido expor seu trabalho… no próprio estado. Criadores indígenas que nunca foram ouvidos (ou lidos) enquanto tal. Diversidade, gente. Diversidade sempre. A gente rala muito nos bastidores em prol desse objetivo, e dele não abrimos mão.
3) Gente, por favor, ponham a mão na consciência antes de disparar o fogo amigo (às vezes nem tão amigo assim, mas vá lá). Antes do FIQ 2024 começar, teve gente pedindo que o Festival fosse cancelado ou adiado por conta da situação de calamidade vivida no Rio Grande do Sul. Muitos quadrinistas, inclusive a Ana Luiza Koehler, que foi homenageada da edição, não conseguiram vir a BH. Nós nos solidarizamos demais, demais mesmo com todos os que foram afetados. Porém, quem sugeriu o adiamento ou o cancelamento do evento, provavelmente não tem nenhuma noção de: a) o tamanho do FIQ; b) o que é trabalhar com política (e verba) pública; e c) o que é respeito à e ao artista. Recebemos artistas de 22 UFs do País e de 5 países. Gente que fez vaquinha, que raspou as economias, para vir ao Festival. Eu até hoje não acredito na verdadeira operação de guerra que o Fabiano Denardin e a Íris Medeiros colocaram em curso para conseguirem que a editora Hipotética (que foi parceira do Festival) estivesse representada E que seus artistas sediados no RS estivessem presentes, mesmo tendo sido profundamente afetados. Adiar o Festival, por mais sentidos que ficamos com toda a situação, seria muito desrespeitoso (pra dizer o mínimo) com todas essas pessoas. Sem contar o risco imenso de incorrermos num processo de improbidade administrativa. Outro “fogo amigo” foi de gente dizendo que o público do Festival era insalubre ou que a organização não estava fazendo nada diante dos ataques recebidos dos vereadores. Gente… nem tudo é divulgado na internet, sabe? Ainda existe um mundo real aqui fora! As duas situações de assédio que soubemos, foram respondidas tão logo tomamos conhecimento delas (uma envolvendo a Helô D’Ângelo e outras artistas; e uma contra a Ilustralu). Essas coisas não são simples e, envolvendo um evento público, precisam ser respondidas de maneira clara e responsável. Mas graças aos deuses do quadrinho, o público do FIQ é um público muito afetuoso e comprometido, posso dizer de boca cheia que esses dissabores foram exceções, não regra. Se você nunca veio ao Festival, não se deixe levar por o que disse gente que nem aqui estava! Também não se deixe levar pelo que eu tô dizendo! Converse com quem veio, se informe. Tenho certeza que rapidinho cê começa a juntar grana para estar na edição de 2026!
4) (Pra fechar, juro!) Não faça comparações que criam rivalidade onde não há e só ajudam quem quer nos ver na merda! O FIQ não compete com outros eventos de quadrinhos do Brasil. Vou repetir pra ficar claro (ou escuro, vou usar negrito): O FIQ não compete com outros eventos de quadrinhos do Brasil. “Ah, o FIQ é assim, a Poc Con é assado!” e vice-versa. Eu, pessoalmente, nunca fui à Poc Con, mas tenho o maior respeito do mundo pelo evento e pelo que ele representa. A data do FIQ deste ano (que tinha que acontecer no 1º semestre, por ser ano eleitoral) foi definida pensando em não afetar a Poc. Eu adoro a Bienal de Curitiba e tenho muita saudade de poder visitá-la. Não tô dizendo que é tudo igual, pelo contrário: cada um destes eventos que citei tem suas características e personalidade. Mas todos comungam de uma mesma ideia, que é o amor aos quadrinhos, à diversidade, à diversidade dos quadrinhos e de quem produz quadrinhos no Brasil. Se cada estado do Brasil quiser fazer um evento desse tipo a cada semana do ano, mesmo que isso represente uma redução do público do FIQ (afinal algumas pessoas artistas poderão economizar no deslocamento, que não é bolinho), eu vou apoiar. Eu quero mais espaço, não menos. Não pra mim ou pra BH, mas pra todo mundo. E não se enganem, pessoal: não tem nada garantido! Terminado um FIQ, começa a luta pra garantir ($$) o próximo! Esses ataques da extrema direita populista, inimiga da cultura e da diversidade, só deixam evidente que ainda estamos em disputa. Criarmos e incentivarmos cisões entre nós só beneficiam a essa moçada aí.
É isso. Cês vão desculpando o textão, mas é que muita coisa tava entalada aqui pós-FIQ – e muita coisa nem tão legal quanto eu gostaria.
Antes de ir embora, eu quero agradecer uma galera, porque depois da tensão, do medo de alguma coisa dar errado, o sentimento que eu mais tenho sobre esta edição do Festival é gratidão (não num sentido tilelê, que fique claro). Então, meu muito obrigado à Prefeitura de Belo Horizonte e ao Instituto Periférico, que colocaram esse evento de pé; ao Afonso e ao Gabriel, que novamente confiaram e defenderam meu nome e da Amma na curadoria; à Amma, porque essa mulher sabe muito, conhece muito, me ensina muito e é uma parceria monstro pra se trabalhar junto; ao Alves e à Ana Koehler, porque são pessoas inspiradoras, incríveis, e eu não podia estar mais orgulhoso de tê-los como homenageados; a todo mundo que trabalhou no Festival; da montagem à faxina, a coordenação ao financeiro, da locução à monitoria, da fotografia à tradução em LIBRAS. Cês são importantes demais e eu sou pessoalmente sortudo de só trabalhar com gente fera; a todas as pessoas quadrinistas que confiaram e seguem confiando no FIQ-BH, que consideram este lugar um seu lugar; às pessoas que vieram visitar o evento, que gastaram dinheiro ou não (isso importa, mas não é tudo), porque são elas que dão sentido à existência do Festival; às professoras e professores que encararam a missão de trazerem as crianças para circularem entre os artistas, para terem contato com o poder engrandecedor da cultura. Que todo apedrejamento diário que vocês recebem não seja o suficiente para fazer com que vocês desistam do futuro melhor que ajudam a construir; à todas e todos quadrinistas que se mobilizaram em arrecadar dinheiro, alimentos e objetos para ajudar não só as pessoas quadrinistas, mas a todo mundo que foi afetado pela calamidade pública no sul; às pessoas quadrinistas (ou não) que foram até a Câmara Municipal marcar presença, mostrando para aquelas pessoas maravilhosas que quadrinho (e travesti) não é bagunça não; a quem não pode vir mas estava junto com a gente de coração apertado e dedos cruzados; aos meus parentes, que me deram gibis desde antes de eu saber ler (e à Sra. Porco, que nunca teve aquelas ideias tortas de “ou eles ou eu”. Nessa altura do campeonato, eu teria muita saudade dela).
É isso, gente. Nos vemos em 2026! Tio Porco ama demais ocês [quase sempre]!