(olha! Outro post, mamãe! São aliens?)
Usturdia o Caruso, sim, ele mesmo, aquele rapaz simpático da Rede Globo, comentou no seu perfil Caverna do Caruso o gibi “Uma irmã”, de Bastien Vivès, lançado aqui pela Nemo em 2018.
“Uma Irmã” foi elogiadíssimo por público e crítica, um arraso no pedaço mesmo. Em algum momento entre lá e cá eu comprei o gibi nalguma promoção, mas não cheguei a ler. No começo porque ele entrou na fila, depois porque já tinha tomado consciência de umas paradas bem escrotas sobre o autor. Tão escrotas que perdi completamente a vontade.
Aí, por ocasião do comentário do Caruso, levantei essa bola no post dele e no Surubão MdM®, simplesmente para descobrir como as coisas nunca vieram de fato a público e, não tendo vindo, não foram discutidas e, não sendo discutidas, ficaram como se nunca tivessem existido – mesmo gente como o 5Horas e Léo Finocchi, que acompanham a produção de Bastien, não sabiam dessas paradas.
Mas estou me adiantando. Vamos começar do princípio.
Bastien Vivès, considerado “o jovem príncipe” dos quadrinhos franceses da contemporaneidade, estreou no Brasil com seu álbum “O Gosto do Cloro”, aqui lançado pela Leya/Barba Negra em 2012, que havia sido premiado como revelação no Angoulême de 2009.
Apesar de uma carreira prolífica (e premiada) em sua terra natal, o autor só voltou a ser publicado aqui em 2018, com o já citado “Uma Irmã” e nos anos seguintes, com as duas partes de “A Grande Odalisca” (pela Pipoca & Nanquim), um trabalho coletivo, mais do seu início de carreira.
Tudo teria corrido bem na vida de Vivès, que continuaria um queridinho do mercado francês, se em 2018 não chegasse aos pontos de vendas seu gibi Petit Paul.
Petit Paul é um gibi, supostamente humorístico, sobre as aventuras sexuais de um rapaz que tem um pênis colossal e quase permanentemente ereto. E tudo estaria bem no mundo do erotismo e do pornô se o “pequeno Paul” da história não fosse um garoto de 10 anos que muitas vezes embarca nas aventuras sexuais sem saber muito o que tá fazendo.
Uma petição pediu a imediata retirada de Petit Paul do mercado, sobre a alegação de que se tratava de “pedopornografia”. No abaixo-assinado, o autor destaca, depois de discutir o caráter criminoso da representação sexual de crianças na França, mesmo que ficcional e “humorística”:
Num texto escrito no Blog da Companhia das Letras, o tradutor Érico Assis fez um rápido apanhado da situação. Segundo conta, a Glénat (editora original de Petit Paul) se defendeu dizendo que o gibi trata de uma história totalmente irreal, exclusivamente humorística, e que não deveria ser entendida como erotismo. O mesmo é proposto pelo próprio Vivès, que compara o exagero de seu erotismo ao da violência nos filmes do Tarantino.
Já no abaixo-assinado se coloca que, apesar do discurso de que é um quadrinho de humor, Vivès declarou que gostaria que ele fosse excitante, uma vez que calcado em suas próprias fantasias ([…] un livre humoristique, mais se voulant excitant car basé sur ses fantasmes […]).
Isso pode soar exagerado, mas, bem… quem disse foi o próprio Bastién. Em entrevista concedida ao Huffington Post francês em setembro de 2018, na qual se celebra a abertura do selo de quadrinhos pornô Porn’Pop da edições Glénat, o entrevistador pergunta algo como “você acha que essa HQ pode ser excitante?” ao que Vivés responde:
“Eu fiz com as fantasias que me excitam pessoalmente. Se o leitor não tiver os mesmos interesses – o que entendo, é claro – é mais complicado. Não existe sadomasoquismo de forma alguma, por exemplo, porque é algo que não me atrai. A sexualidade é tão pessoal … É difícil dizer a si mesmo que vamos deixar todo o planeta excitado. Mas se isso não for excitante, pelo menos espero que os leitores riam.”
Partindo dessa mesma entrevista, você pode dizer que, ao afirmar que o interesse sexual de Vivès, expresso em Petit Paul, é pelos membros “monstruosos”, extremos, algo como uma megalofilia. Mas vamos lá… ainda é um garoto de dez anos com um pênis gigante!
A coisa porém, não para por aí. Porque em fevereiro de 2018, Vivès lançara, pela BD-Cul, o quadrinho “La Décharge Mentale” ou, em bom português, “Descarga mental”. Como você pode ver pela capa acima, o selo cor-de-rosa choque diz que é “proibido para pessoas que têm crianças”. Alerta estranho, na melhor das hipóteses.
Em “La Décharge Mentale”, dois velhos amigos, Michel e Roger, se encontram depois de muito tempo. Roger está mal, e Michel o leva para casa, onde Isabelle, sua esposa, e suas três filhas, esperam com muita bondade e “amor” pra dar.
Se não ficou claro para você, reproduzo parte do texto de Manifesto XXI sobre a HQ: Isabelle é “uma dona de casa perfeita, disposta a fazer tudo para satisfazer seu marido. Ela cuida para que suas filhas, de 17, 15 e 10 anos se tornem mulheres tão eficazes quanto a mãe.” Repare que na capa, o selo que diz “BD-Cul C’est sympa” (algo como “BD-Cul é legal”) cobre quase toda uma criança sentada no colo da mulher. E também que “le décharge” tenha sido escrito com uma tipologia fluída e branca.
Na mesma matéria que linkei acima, o/a autor/a levanta a possibilidade de que Vivès tenha nomeado seu quadrinho para fazer referência à produção da quadrinista feminista Emma, chamada “The Mental Charge” (“Carga Mental”), que compilava situações cotidianas dos relacionamentos domésticos homem-mulher, focados na sobrecarga que elas sofrem, com jornadas duplas e triplas (The Mental Charge depois foi compilado no álbum “The Mental Load – a feminist comic“). Além dos nomes semelhantes, Vivès já criticara Emma publicamente (“O Estado deveria impedir que pessoas com vidas de merda fizessem quadrinhos. Depois de Emma, as repercussões podem ser catastróficas.“, num tweet de abril de 2018), mas há também a questão doméstica, cenário compartilhado pelas duas produções. O próprio site de venda de “La Décharge Mentale” fala que o gibi vira do avesso as convenções das séries de família, e cita nominalmente Oito é demais, programa de Tv norte-americano dos anos 1970.
Mas pornô.
Pornô com crianças.
O incensado “Uma irmã”, que comecei o post citando, é sobre a iniciação sexual de um menino com uma garota mais velha. Não chega a ser uma novidade no mundo dos quadrinhos: “A Playboy”, de Chester Brown, e “Retalhos”, de Craig Thompson, falam do começo da vida sexual de dois rapazes menores de idade. Mesmo sendo gibis autobiográficos, o problema não está aí.
O problema com “Uma irmã” passa a residir na repetição. Visto a partir de “Petit Paul”, de “La Décharge Mentale” e do não citado antes “Les melons de la colère”, de 2012 (algo como “As tetas da discórdia”, numa tradução bem livre da minha parte, ou “Os seios da ira”, pra manter a referência ao romance “As vinhas da ira”), mesmo o (outrora) inocente “Uma Irmã” fica estranho e perde essa inocência. Foi em “Les melons” que o pequeno Paul fez sua estreia (ele é irmão da protagonista), em condições que você pode julgar pela página abaixo:
E isso porque estou falando unicamente o problema envolvendo “Uma irmã”, mas como acredito que deu pra ver aqui, a grande zebra é o que Vivès gosta de contar. Isso sem mencionar, como bem me chamou atenção a Carol Rossetti, um outro “””fetiche””” subjacente às tramas (sobretudo as eróticas): as relações de poder. A protagonista de “Les melons de la colère”, o pequeno Paul (tanto no gibi solo quanto no anterior), são sujeitados aos desejos de alguém que detém o controle. Esse aspecto fica ainda mais claro no abjeto curta-metragem que Vivès fez para o concurso de um canal infantil francês, quando ainda era estudante de animação. Chamado “Novos heróis” (o tema do concurso era “os novos heróis das crianças”), a animação apresenta uma menina fugindo desesperadamente de um abusador, até se dar conta que esse agressor é seu pai e, na sequência… se entregar a ele.
(sério. Como sempre, você não precisa acreditar em mim. Nem deve. Assista o vídeo você mesmo clicando aqui)
Diante disso tudo, só duas saídas são possíveis: uma, a escolhida pela Glénat e por Vivès, que é dizer que são só piadas e nós que não entendemos, porque somos como as Irmãs Cajazeiras ou o bando da Perpétua de Tieta, uns falsos moralistas.
Mas qual exatamente é a graça de colocar crianças em situações sexuais? Por que isso parece divertir tanto Vivès para ele colocar sempre NO CENTRO de seus trabalhos pornô? E não, a conversa da Glénat de que não é pornografia, mas humor, não cola: o selo que Petit Paul inaugurou é um selo pornô, capitaneado por uma ex-atriz pornô, Céline Tran. Na página do selo no site da Glénat, está o aviso de que é voltado a leitores adultos. Logo… o que é que tem biquinho de pato, asinha de pato, peninha de pato, faz barulho de pato e não é pato? Difícil.
Nessa sequência, pode-se evocar novamente nosso puritanismo judaico-cristão e dizer que não é que Vivès seja pedófilo, ele só é francês, e nós, carolas moralistas e mal amados, estamos incomodados com a representação visual do pênis, apesar de sermos tão lenientes com a exploração da nudez feminina. Essa é, por exemplo, a tese central do texto do Érico Assis que citei antes.
Oras, a representação do pênis está longe de ser o problema, como bem discute Philippe Leblanc neste texto aqui. Não tivemos reações pudicas ao pênis azul-neon do Dr. Manhattan, e olha que estamos falando dos anos 1980, bem mais moralistas. Isso porque, claro está, o problema não é o pênis.
Nunca foi. Lembra do segredo do Morcego?
O problema é que esse pênis, retratado em sua função de órgão sexual, ser representado junto com uma criança.
Aí se evoca, desonestamente, o grito de que se está propondo censura moralista, que devemos defender a liberdade de expressão e coisas do tipo. Isso só faz sentido se dissermos que sexo envolvendo menores de idade, isto é, pedofilia, é uma manifestação normal da sexualidade e que ir contra isso é censura.
Nem preciso ir muito além, né?
Segundo a Wikipédia.en, desde 2019 Vivès não lança mais nada, e não sabemos se ele está preparando algo, se foi ostracizado pelos editores ou o quê. Fato é que, no mundo dos algoritmos polarizantes, qualquer coisa (por mais absurda que seja) conseguirá quem a defenda publicamente. Enquanto livrarias tiraram Petit Paul de circulação, teve local que viu suas edições esgotarem.
Por mim, Vivès não é insubstituível. Sequer é um autor necessário. Então que seus quadrinhos feitos “a partir do que o excita para serem capazes de excitar os outros” não são suficiente para justificar nenhuma passada de pano, e mesmo que fossem obras incontornáveis, não consigo ver como poderiam superar essa obsessão temática de seu autor.
Pelo menos não da minha parte – e essa é a segunda saída: não precisamos de Bastien Vivès e seu trabalho “transgressor”. Há limites que não dá pra negociar. Que vá fazer companhia, no lixo da História das histórias em quadrinhos, a gente como Nobuhiro Watsuki (Samurai X) e Gerard Jones (Lanterna Verde).
É tenso agradecer pessoas num texto desses, mas ele não teria acontecido se não fosse a perplexidade do Caruso, da Belle Felix, do 5Horas e do Pelúcio mostrando que não, a bizarrice do Bastien Vivès não era notícia popular e que precisava ser trazida à luz do dia.
Também ao Gabriel Nascimento e à Carol Rossetti, pelos toques, links e pelo help no francês.
Claro, e ao Google Tradutor, para que o Gabriel só precisasse se preocupar com o que o Google não deu conta.