Existem filmes e filmes de terror. Alguns querem só a boa e velha diversão catártica de ver coisas macabras e sangue aos montes (o que é ótimo, não estou reclamando). Outros tentam se aventurar pelo capcioso caminho da história com camadas, nem sempre com bons resultados. Corra! vai um pouco além e busca ainda ser socialmente relevante (quase um suicídio neste gênero). Some isso ao fato de que o filme é escrito e dirigido por Jordan Peele – famoso por ser metade da dupla de comediantes Key and Peele – e o primeiro pensamento é de que o filme será uma perda de tempo. Não é. É provavelmente um dos thrillers mais interessantes dos últimos tempos.
Corra! conta a história de Chris, um fotógrafo negro (essa informação é importante para a história) que vai visitar pela primeira vez os pais de sua namorada caucasiana, Rose. Apesar de Rose tranquilizar seu namorado que seus pais são democratas e votariam no Obama uma terceira vez, a visita não ocorre exatamente como o esperado, uma vez que alguma coisa estranha se passa naquela residência.
O filme tem uma porção de méritos, três deles valem ser mencionados aqui. O primeiro é sobre como trata a questão racial. Ao invés de trabalhar a óbvia tensão entre negros e os “estados vermelhos” (como Kevin Smith tentou fazer em Red State, com resultados mais ou menos, mais ou menos), Peele insere um elemento muito mais interessante: o perigo não vem de um grupo de religiosos fanáticos ou de teóricos de conspiração que acham que o Obama não é americano, pelo contrário; vem daqueles brancos que acreditam que são aliados da causa negra.
Outro ponto muito interessante é o uso do humor no filme. É claro que não é nada inédito um filme de terror contar com elementos de humor, mas o que o diretor e roteirista consegue fazer aqui é bem diferente do que eu já vi. Não se engane: Corra! é um thriller de terror, não é um “terrir”. Mas possui cenas muito engraçadas que aliviam a tensão na hora certa e não se sobrepõem ao clima geral do filme – algo que, diga-se de passagem, é muito difícil de ser feito com eficiência, mesmo em outros gêneros.
Por último, mas não menos importante, está a trama propriamente dita. Peele se aproveita das pressuposições que o espectador vai fazer em relação às questões raciais e cria um mistério envolvente, mas cujos mecanismos e objetivos são bem diferentes do que você espera. A cada vez que você pensa que o filme vai cair no óbvio, ele surpreende levando para outra direção.
Neste tipo de filme (de paranoia/conspiração/terror/thriller), é necessário um tipo de performance bastante particular, que fica no limite entre o dramático demais e o paródico, algo que pode facilmente cair para um lado ou para outro e não ter o efeito desejado. Aqui, as atuações são bastante pontuais, auxiliando a atmosfera e o clima de paranoia que fica cada vez mais tenso com o decorrer do filme.
Há, entretanto, alguns problemas mínimos. Como o filme se inspira/homenageia filmes e obras clássicas deste subgênero (como Esposas em Conflito, Sociedade dos Amigos do Diabo e Invasores de Corpos), ele acaba tendo um ou outro momento previsível, com pelo menos uma reviravolta que, para os fãs acostumados com esse tipo de filme, não vai ser surpresa. Mas como o filme trabalha com diversas camadas e frequentemente no nível do conceitual (a propriedade que parece com uma fazenda de algodão, o uso simbólico do próprio algodão em um momento chave do filme, e por aí vai), estes problemas passam batido muito facilmente.
Outro ponto que me incomodou um pouco foi o uso do “gordinho” como alívio cômico, acho que já é hora de deixar estes clichês para trás. Mesmo assim, Peele consegue dar uma leve subvertida nessa dinâmica, fazendo com que o personagem não seja desperdiçado apenas para ser a piada ambulante do filme.
Corra! é uma grata surpresa numa hollywood infestada por filmes de terror quase publicitários feitos a partir de briefings que tentam fazer sempre “igual, mas diferente” e coloca Jordan Peele no mapa como um roteirista e diretor de terror para se ficar de olho nos próximos anos.
Nota: 9,92134587362