Vivemos em um mundo onde o terror é limitado. Não pela criatividade ou técnica de seus idealizadores, mas pela mentalidade do seu público. Hoje temos uma geração inteira que avalia o gênero por sua formatação estética ao invés da sua carga psicológica. O resultado são filmes formulaicos que parecem todos iguais, e qualquer coisa que foge dessa caixinha não é entendido como terror. “Medo” (uma emoção bem mais profunda) é confundido com “sustinho” (reflexos fáceis de se obter do espectador). Aí temos alguns comentários meio incoerentes do tipo “não gosto muito de terror, gosto mais de suspense”. Sei que parece chatice de velho (e talvez seja), mas é uma pena que as pessoas assistam a filmes de terror muito bons e não os caracterizem como tal simplesmente por conta dessa mentalidade limitada quanto a abrangência narrativa do gênero.
É claro que estou falando tudo isso para poder contextualizar o que faz de A Bruxa um filme de terror diferente do que o pessoal está acostumado (pelo menos no que se refere aos filmes norteamericanos) e, ainda assim, um bom exemplar das possibilidades psicológicas de um filme de terror. Um dos problemas dos chamados “filmes de gênero”, aqueles que nos referimos como “filme de comédia”, “filme de terror”, etc (especialmente os que se valem de formulas como o “jump scare” exaustivamente) é prezar pela forma em detrimento do conteúdo, e já foi nos mostrado que o equilíbrio entre ambos é a diferença entre um filme de terror razoavelmente divertido e uma obra de arte (Deixe Ela Entrar, Labirinto do Fauno e The Babadook são alguns dos exemplos mais recentes). Sendo o primeiro trabalho do estreante Robert Eggers, fazer um filme como A Bruxa é uma tarefa impressionante, mesmo que não venha sem seus problemas.
A Bruxa conta a história de uma família fervorosamente cristã e puritana* que é excomungada e obrigada a viver excluída da colônia americana onde viviam. Entre os membros da família está Thomasin, uma jovem já chegando na sua maturidade, que se vê numa onda crescente de ódio e paranoia quando seu irmão desaparece sob sua guarda.
Uma das coisas que torna A Bruxa um empreendimento impressionante é a caracterização. É isso que dá credibilidade ao filme, não só pela ambientação histórica do período, mas também na preocupação com detalhes como a pronúncia do inglês arcaico – algo que pode soar um pouco estranho no começo, mas logo espectador se acostuma, se entender que essas diferenças linguísticas não são por acaso. Não há como duvidar que estamos vendo uma história passada no século XVII, tal é o cuidado com a contextualização da época, e o melhor; sem precisar de nenhuma exposição ou didatismo. Só isso já coloca A Bruxa à frente a maioria dos exemplares norteamericanos do gênero.
As atuações também são um ponto forte do filme. Às vezes as pessoas se esquecem o quanto uma história de fantasia necessita de uma atuação até melhor do que uma história mais “real”. Se a atuação não te vender que aquilo está realmente acontecendo, você rapidamente pode passar do real interesse para o escárnio. Com exceção de um ou outro deslize, a atuação de todos os atores, especialmente das crianças, é simplesmente fantástica.
A Bruxa também tem méritos por atuar em diversos níveis, coisa que não é tão comum em filmes mais “mainstream”. Pode ser vista como uma história sobre paranoia fundamentalista, mas também pode ser vista como um “cautionary tale” sobre o que acontece se você se descuida de suas obrigações cristãs. Pode ser visto como uma alegoria a respeito de como estamos indefesos frente a um mundo que não faz sentido, e por isso inventamos bruxas, deuses, santos e poderes sobrenaturais para manter nossa sanidade.
Mas creio que a ideia mais importante que a Bruxa trabalha é sobre o “medo das mulheres”. É claro que não o medo mais superficial, aquele mesmo que tão facilmente é despertado com os “jump scares”, e sim um sentimento bem mais profundo. No filme, a mulher é vista sempre como a mais propensa ao pecado (seja em pecar, seja em tentar o homem ao pecado). Sempre a que mais é cobrada por suas obrigações. Também é vista como a causa da perdição do homem, que é uma perspectiva bastante enraizada no cristianismo (e faz sentido, considerando que o cristianismo é baseado na crença em um homem adorado pela humanidade por ser “puro”, ou seja, não ter se envolvido com nenhuma mulher, tendo nascido de uma virgem, ou seja, uma mulher “pura”). Todo esse medo, é claro, alcança o auge quando a menina chega em uma idade onde começa a despertar “interesses carnais”. É aí que ela deve (ou devia, naquela época) procurar um marido o mais rápido possível, para não “tentar” outros homens. Esse ponto também reforça a pressão sofrida pelas mulheres na época de forma mais sutil, quando Thomasin é vista pelos pais como a “solução” para a escassez da família, desde que case com alguém.
O tema do “medo da mulher” é recorrente em todo o filme, e é personificado em Thomasin. É ela quem sofre mais com os erros cometidos, mesmo quando os erros são dos outros. É ela quem é culpada pela própria mãe por “tentar o irmão” aos desejos carnais, sendo que é bem claro no filme que não há tal conotação para ela. É ela também que tem que cuidar dos irmãos e ajudar a mãe na casa. Porque é a mais velha, sim, mas principalmente porque é mulher.
A parte boa de tudo isso é que “A Bruxa” trabalha com todos estes temas sem pedir desculpas, mas de uma forma tão orgânica e bem contextualizada que é possível absorver a mensagem sem se distrair por ela. E, apesar dos elementos fantásticos, o filme consegue passar uma sensação de realidade que te deixa desconfortável em diversos momentos.
Mas o realismo, ou a verossimilhança do filme é, ao mesmo tempo, um ponto forte e um ponto fraco. Como o filme não se vale dos truques comuns em produções de terror mais mainstream, você se envolve com a história em um nível diferente, talvez até mais profundo, e isso pode causar um certo problema quando a película chega em seu final. Para muitos, o final vai soar caricato, porque destoa daquele realismo aparente que o filme apresentou até ali. Mas se for entendido como um final alegórico, que encerra o arco de repressão e libertação feminina, o final funciona perfeitamente. Para mim, particularmente, soou um pouco estranho e eu precisei refletir a respeito após sair da sessão para ter uma ideia melhor sobre o final.
Existem alguns pequenos problemas com esse filme. Por exemplo, algumas cenas ficam bastante no limite entre o terror e o humor involuntário, o que pode prejudicar bastante o clima para quem estiver assistindo. Além disso, o filme pode incomodar algumas pessoas pela representação caricata – e em grande medida incorreta – das bruxas (como seguidoras de Satã e capazes das mais horrendas atrocidades). Mas temos que lembrar que é como estas personagens eram vistas à época que o filme se passa.
Num geral, no entanto, “A Bruxa” consegue capturar a atenção por ser uma narrativa densa e real – às vezes até demais. Mais do que o terror advindo do sobrenatural, o filme trabalha com temas que até hoje são medos bastante próximos – o sustento da família, a perda de um filho e, para os religiosos, o medo de ter feito algo errado contra deus, e ter que pagar por isso.
A Bruxa, como filme, não é um “filme de gênero”, que se preocupa mais com a estética e menos com a profundidade do seu enredo, e talvez por isso muito provavelmente vai decepcionar quem está acostumado com os típicos filmes que pipocam a cada dois ou três meses no cinema. Na minha sessão, a maioria saiu de decepcionado a xingando o filme (em voz alta). Mas, para quem está disposto a assistir uma história sobre medos bastante reais disfarçados de sobrenatural, A Bruxa é um filme que vale dar uma chance.
Nota: 9,666
*Se refere ao grupo de cristãos protestantes dos séculos 16 e 17, não ao uso do termo como é atualmente.