A gente vimos: Batman v Superman – A Origem da Justiça, por Algures (spoilers menores)

Memória afetiva é um troço complicado. Como é um tipo de sentimento muito ligado ao contexto que fazíamos parte na época e ao momento que vivíamos, ficamos sempre com aquela esperança de conseguir recapturar essa magia e trazer de volta esse “pico” de prazer que tivemos por conta daquele momento. É quase como se este momento fosse uma droga, e a memória afetiva fosse a abstinência; estamos sempre em busca daquele prazer que tivemos quando usamos essa droga pela primeira vez* e cada tentativa necessita de um nível cada vez maior de prazer ou a decepção acaba sendo cada vez maior, até você morrer de overdose (ou, no caso da memória afetiva, até você “morrer” para se e se tornar um velho amargo que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã e achar tudo isso um saco, parafraseando Raul Seixas).

É a memória afetiva que faz ser tão difícil acertar em séries antigas que retornam anos depois. O fator nostalgia possui uma relação complexa com nossa psicologia, então às vezes dar ao espectador exatamente a mesma coisa não causa efeito, mas fazer algo totalmente novo também não. E fica-se nesse limbo, de achar que a nostalgia ou o retorno de algo que nos era querido suprirá essa necessidade, mas quando acontece, nunca o faz.

É essa mesma memória afetiva que nos faz achar que os quadrinhos que líamos eram muito melhores do que realmente foram. Se pegarmos apenas as HQs mainstream americanas dos anos 80 e 90 (Marvel e DC basicamente), quantos histórias que são realmente “obras-primas” nós tivemos? Quantas possuem, realmente, um (na falta de um termo melhor) “valor literário”, algo que possa ser colocado lado a lado com os clássicos da literatura como Poe, Shakespeare, Twain, e por aí vai? Se você for honesto consigo mesmo, a resposta é: pouquíssimas. Ouso dizer que não passa de 10, dos milhares de quadrinhos lançados pelas duas grandes editoras nos últimos 30 anos. E isso leva a uma conclusão óbvia, mas que é uma verdade bastante inconveniente: HQs realmente profundas, realmente “boas” num sentido mais sofisticado, são a exceção, não a regra.

Porque perdi tempo falando besteiras sobre memória afetiva numa resenha de um filme de super-herói? Se você estiver prestando atenção, já deve ter começado a juntar as peças do quebra-cabeça. Essa expectativa de recapturar a magia do passado às vezes acaba sendo um obstáculo para aproveitarmos essa nova onda de filmes de super-herói. Ao achar que as HQs que líamos no passado eram melhores do que realmente eram, fica difícil não se decepcionar com qualquer coisa que um filme de super-heróis faça – mesmo que seja fiel à essência e ao “nível literário”, por assim dizer, das HQs que curtíamos no passado. É isso que faz com que certas pessoas odeiem os filmes da Marvel por serem “superficiais” (como se os quadrinhos, algum dia, tivessem sido muito mais do eu isso). E meu palpite é que também é isso que tenha feito com que muitas pessoas tenham se decepcionado tanto com Batman v Superman.

Primeiro, vamos por partes: BvS é um filme de quadrinhos como qualquer outro que tem por aí. Ser melhor ou pior em comparação a outros filmes é uma questão subjetiva. Tecnicamente, ou melhor, numa análise mais objetiva, o filme só tem de diferente ser mais depressivo (mais até que os X-men da FOX). Mas tem muito dos mesmos defeitos – e também das mesmas qualidades – de qualquer outro filme que aprendemos a gostar hoje. E, é claro, alguns dos seus próprios defeitos e qualidades.

A história do filme segue diretamente das consequências de O Homem de Aço: enquanto a vitória do Super contra Zod é vista por boa parte das pessoas comuns como uma coisa boa, há diversas pessoas (especialmente em setores de autoridade) que não vêem com bons olhos um cara tão poderoso que não responda a ninguém. Adicionando ao caldo, Bruce Wayne tem uma raiva – justificada – contra Kal-El por que funcionários de um prédio seu em Metrópolis morreram durante a batalha – e um deles perdeu as pernas. Isso faz com que o sempre paranoico Bruce Wayne comece e a se preparar para o caso de algum dia ter que enfrentar esse cara que pode, sozinho, destruir o planeta inteiro se quiser. Essa é a trama básica do filme, mas, estranhamente, não é disso que o filme trata. Tanto é que o título do filme pode ser um pouco enganador: Batman v Superman: A Origem da Justiça é, principalmente, uma história de origem do universo DC, o “dawn” (“alvorecer”) do subtítulo.

O conflito “ideológico” (e depois físico) entre os dois heróis é apenas um “desculpa”, quase um mcguffing, para levar o espectador num “tour” pelo emergente Universo DC nos cinemas. Por isso, nós temos Lex Luthor manipulando todo mundo ao mesmo tempo que mantém registros sobre supostos outros “meta-humanos” flagrados por aí, e uma Diana Prince que tem uma agenda própria, mas se vê obrigada a mais uma vez defender a humanidade, muito tempo depois de ter desistido dela. Para boa parte dos fãs da DC, isso é ótimo, porque é a desculpa perfeita para encher o filme de referências às Hqs e introduzir mistérios que serão parte do plot de outros filmes (em particular o primeiro filme da Liga da Justiça).

Só das Hqs referenciadas, nós temos O Cavaleiro das Trevas (tanto em iconografia quanto em sequências inteiras e diálogos retirados da HQ), Injustice (quando Batman vislumbra um possível futuro onde Superman dominou o mundo), a Morte do Superman e Funeral para um Amigo (com diálogos e algumas imagens extraídas diretamente da HQ), e até Crise Nas Infinitas Terras (com uma cena que vai deixar os fãs da DC bastante interessados no que pode rolar no futuro), além de referências off-DC de Star Wars.

É claro que isso é, ao mesmo tempo, uma coisa boa e uma coisa ruim. Quando as referências funcionam, são ótimas. Mas em diversos casos elas são forçadas para estarem lá (como quando tiram um dos diálogos diretamente do Cavaleiro das Trevas mas, sem a bagagem que os dois personagens já tinham no material fonte, a fala soa deslocada e só servirá para quem leu a HQ).

E esse é, para mim, um dos principais problemas do filme: É um filme feito para fanboys. Num primeiro momento, isso poderia parecer uma coisa boa, mas é provavelmente o que derruba um pouco o filme. Ao tentar excessivamente agradar aos fanboys de HQs, o filme traz diversas referências e ligações entre os personagens, assim como preparação de outros plots futuros, que só vão funcionar para quem conhece mais a fundo o material fonte. Creio que muitos espectadores “civis” vão ficar boiando em algumas partes do filme.

A parte boa, pelo menos para mim, é que, ao contrário do que muitas críticas disseram, a história faz sentido. Temos um mundo reagindo à descoberta de que, não só existe vida em outros planetas, como essa vida é muito mais poderosa que nós e pode se “disfarçar’ entre os humanos sem que a gente perceba. Temos um Superman desiludido com a humanidade, com sua esperança abalada e seu psicológico fragmentado. Temos um Batman paranoico que já viu de tudo e já viveu demais – um espelho da própria Mulher Maravilha que esteve num “hiato” da humanidade até seu retorno neste filme. E temos um Lex Luthor que é tão paranoico quanto Bruce Wayne, mas é muito mais psicótico (curiosamente porque, diferente do Bruce, o pai de Luthor não morreu quando ele era criança e deixou fortes cicatrizes psicológicas no personagem). Mas como o filme é longo e a ação de verdade demora a acontecer, talvez os espectadores mais agitados tenham deixado passar algumas coisas e por isso não viram as ligações entre as tramas.

A história funciona, mas é simples e muitas vezes se perde nos detalhes (Superman acusado de um massacre na África onde as pessoas foram mortas por TIROS. Oi?). Se tem uma coisa que o filme pode ser culpado é de ser pretensioso e tentar vender algo que não é. É uma boa “hq de super-heróis”, mas está longe de ser uma “obra de arte” com “valor literário” ou com aquele valor que nossa memória afetiva dá excessivamente à algumas Hqs do passado. As motivações dos personagens são justificadas, mas a abordagem delas é superficial; os personagens são bem construídos, mas temos pouco tempo para realmente conhecê-los de forma mais aprofundada. Quando finalmente a ação de verdade começa, o filme acaba. E tramas paralelas estão lá apenas para instigar sobre histórias futuras, mas podem ser mal interpretadas por quem não está interessado em seguir essa história em outros filmes – ou quem esperava que tudo se amarrasse num filme só.

Muita gente vai reclamar que o filme demora para chegar no real “Batman v Superman”, mas a verdade é que o filme leva tempo para contextualizar a luta física entre os personagens. A batalha psicológica, entretanto, é vista desde o início do filme. Mas como o ritmo inicial é lento, isso certamente chateará alguns espectadores. O filme se dá o direito de levar tempo para construir a história, mas a consequência disso é que o terceiro ato, como é normalmente em filmes dirigidos pelo Zack Snyder, é frenético e tenta fechar todas as pontas soltas de uma vez só – sem contar sequências bastante desnecessárias,algumas feitas só para servir de fanservice, que diminuiriam consideravelmente a duração do filme.

Quanto às atuações, não há muito o que reclamar. Jesse Eisenberg atua muito bem no filme, mas a versão do Luthor que ele encarna certamente vai fazer fãs mais puritanos torcerem o nariz. O Superman que vemos é o Superman de O Homem de Aço, ou seja, não é o Superman “clássico” o qual estamos acostumados, mas é um Superman interessante de se acompanhar, especialmente neste filme, onde seu otimismo com relação a humanidade começa a ser testado das mais duras formas. Ben Aflleck e Jeremy Irons resgatam o melhor do Batman e do Alfred da série animada e Gal Gadot, embora não tenha um nível de atuação excepcional, funciona o suficiente para deixar a Mulher Maravilha como um dos pontos altos (talvez “O” ponto alto do filme, junto com um cameo bem bacana do Flash). Amy Adams segue sua Lois Lane padrão, embora um pouco apagada neste filme, e Laurence Fishburne se mostra uma ótima opção para interpretar Perry White. É uma pena que o Planeta Diário não tem uma participação muito grande na história.

Mas é claro que BvS tem problemas. O filme traz o Batman tendo pesadelos, o que serve como uma desculpa para plantar a semente de uma trama futura, mas que fica totalmente deslocado por não ter seu encerramento no próprio filme (o final até faz certa ligação, mas ela só terá sentido para quem conhece personagens que ainda não são familiares ao público em geral, como Darkseid). Além disso, tem alguns problemas de edição que me lembraram o Cavaleiro das Trevas Ressurge. E talvez seja esse o “segredo” involuntário do Snyder; uma edição que deixa tudo muito “pela metade”, ficando a sensação de que em cada cena a mensagem foi entregue, mas não foi “sentida”. Além disso, o clima depressivo do filme e o fato de que tanto Batman quanto Superman não terem problema nenhum em MATAR (uma descaracterização forte da visão mais geral dos personagens) fará com que muitos fãs fiquem extremamente bolados. Fora que o filme sofre da “sindrome de A Era de Ultron”: muita informação para pouco espaço para desenvolver, o que pode fazer com que muita coisa passe despercebida e faça o filme perder o sentido em alguns momentos – sendo necessário talvez mais de uma assistida para se absorver os detalhes com calma.

Outros problemas que vi no filme são mais pessoais. Quem esperava que este filme mostrasse um Superman mais cuidadoso, vai se decepcionar. Quem esperava que a identidade secreta de Clark Kent desempenhasse algum papel relevante, também. E, principalmente, quem esperava que outras mulheres do filme além da Mulher Maravilha fossem bem aproveitadas, vão ficar chupando o dedo. Com exceção de Diana Prince, as mulheres do filme servem apenas para serem salvas ou virarem refém – um aspecto clássico das hqs de super-herói, mas que para o mundo de hoje soa bastante datado.

Em suma, Batman v Superman: A Origem da Justiça peca por não entregar a “obra de arte” que nossa memória afetiva acredita que eram os quadrinhos de Super-herói – e que a Warner tenta vender desde Man of Steel. Mas talvez a gente também peque pela falta de boa vontade quanto aos filmes da DC. BvS não é nada diferente de qualquer outro filme do mesmo tipo por aí. Os mesmos problemas de outros filmes do gênero (ligações demais com tramas externas, terceiro ato apressado, vilão com plano e motivações vagas, problemas na caracterização da passagem de tempo, etc) serão encontrados aqui, mas a diferença é que só nesse filme teremos a chance de ver aquilo que todo fã da DC quis ver desde que começou a ler quadrinhos (o que no meu caso são quase 30 anos): a Trindade da DC reunida em carne e osso e as sementes da formação da Liga da Justiça. A memória afetiva também tem seu lado positivo, afinal de contas.

Nota: 7,58

*Pelo menos é o que DIZEM, né, não sei nada sobre isso, eheuehuehueheuheuheueh

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