O ano é 1987. Dois rapazes ingleses queriam começar a fazer quadrinhos. Seus nomes? Um tal de Neil Gaiman e um certo Dave McKean. A tentativa deles? Violent Cases, recém relançado pela editora Aleph.
Violent Cases é uma HQ sobre memória. Um homem, atrás de grades, te conta uma história perdida na memória: uma história de quando ele lesionou o braço e precisou ir a um osteopata e que, por sua vez, havia sido o osteopata pessoal de Al Capone. O quão fidedigna pode ser a memória? O quanto do que se lembra é verdade e de fato aconteceu?
Com essa premissa, Gaiman (e, muito mais do que ele, McKean) brincam numa história curta, sem muitas reviravoltas ou clímax, mas impressionista – se a memória, como dizia Waly Salomão, é uma ilha de edição, a do protagonista de Violent Cases sofreu muitos recortes, inserções e reinterpretações na pós-produção.
Como disse, é uma HQ curtinha e de uma trama muito, muito simples, mas é impressionante como Gaiman traz conteúdos para reflexão e como McKean consegue, à perfeição, fazer convergir a forma ao interesse desses conteúdos. É sério! E olha, eu nem sou um grande fã do McKean, conforme já disse antes (na resenha sobre Orquídea Negra, que praticamente se perdeu na Crise das Infinitas Migrações), e não gosto da arte dele justamente por achá-la abstrata demais, muito pouco figurativa. Mas eis que aqui em Violent Cases ela se encontra numa apresentação perfeita! Ela é figurativa na medida em que precisa ser, e as pirações abstratas, as colagens e alterações de estilo casam com perfeição com a narrativa. Mesmo sendo curto, é um álbum que graficamente não cansa, pelo contrário, as variações estilísticas integram, engrandecem e justificam o quadrinho – o que se faz aqui só seria possível de ser feito em HQ. Assim, fazem sentido os recortes, as colagens, as imagens de memórias geradas por analogias (vide a fita métrica do alfaiate metamorfoseada em serpente).
Inclusive, num ponto de vista “psicológico”, as quarenta e tantas páginas de Violent Cases compõem um material riquíssimo para interpretações desse tipo. Entretanto, era necessário ter acesso ao roteiro original para saber exatamente a quem dar os parabéns por isso, se a Gaiman ou ao McKean, mas eu suponho que seja ao segundo. É notável a representação gráfica que ele dá às solidificações, às analogias e às ressignificações a posteriori das lembranças. É uma história muito bem montada, sem excessos de nenhuma espécie. É do tipo que pode decepcionar alguém que esteja começando a ler quadrinhos agora, ainda incapaz de aproveitar os usos criativos da linguagem que se dão. Para os velhacos, é um prato cheio.
Em resumo: se até aqui eu não gostava da arte do Dave McKean, Violent Cases me ensinou que o problema não era ele. Eu é que estava lendo os materiais errados.
Violent Cases, de Neil Gaiman e Dave McKean. Editora Aleph, 64 páginas, cores, capa cartonada. R$39,90 (mas tem com desconto aqui)
Nota: 8