Um dos trabalhos mais obscuros e fora da caixinha do universo DC tradicional do careca maluco finalmente chegou ao Brasil.
Mas já dizia a Vovó Porco, nada nessa vida acontece na véspera, e Flex Mentallo me caiu nas mãos no exato momento em que deveria cair – mas isso eu explico mais pra frente.
Em Flex Mentallo – o homem dos músculos mistério, somos apresentados ao Flex, um estranho super-herói queixo quadrado, peludão (tipo o Foxman ou o Tony Ramos) que anda por aí a lá Nerd Reverso, de tanguinha de onça, coturno e munhequeiras daquelas que prometiam talhar os músculos de quem as usasse lá nos anos 80. Tem misteriosos poderes ligados a seus músculos mistério e um atentado a bomba faz com que ele se ponha a procurar seu colega de heroísmo chamado Fato, famoso por deixar bilhetes com “fatos” à cada atuação. Mas o lance por trás da busca é outro: Flex tem consciência de que foi criado pela mente fértil de um garotinho, Wally Sage, e conseguiu sair de lá. Se fatos mostram que o Fato também conseguiu essa proeza, ele precisa então encontrá-lo! Ao mesmo tempo, um jovem Wallace Sage está às portas da morte contando sua via à um atendente do CVV!
Morrison é famoso por sua lisergia, e em Flex Mentallo ele a leva esse atributo (+2 contra leitores burros) às últimas consequências. A HQ não é linear, nem em termos cronológicos nem em fluxo de raciocínio. Há fatos soltos, deslocados, sobrepostos, e que vão fazendo sentido à medida que a trama caminha. Exclusivamente à medida que a trama caminha!
Quando eu falava que as coisas têm hora certa pra chegar nas mãos da gente é justamente pensando que, se eu tivesse lido Flex Mentallo há, sei lá, cinco/seis anos, teria achado a história uma merda. Porque eu seria completamente incapaz de entender o que Morrison estava fazendo, e te digo de cara: em Flex Mentallo, Grant Morrison estava fazendo sua Promethea. Antes de Moore/J.H.Willians III, Morrison usou-se de uma HQ (e de Quitely) para panfletar suas crenças!
O careca acredita (e já defendeu isso explicitamente, como em Superdeuses) que o universo dos quadrinhos é um universo real, habitado por pessoas reais e que nós acessamos através das revistas, tomadas como ficção. Uma HQ então não é uma “estória”, mas uma janela real para uma “história” que vemos, controlamos o tempo, avançamos e voltamos a nosso bel-prazer. É essa a tese central de Flex Mentallo – existem inúmeros mundos e universos paralelos que podemos acessar ou não – o mundo dos quadrinhos é um deles, e nós o acessamos. Assim, Flex Mentallo, a HQ, funciona como um corredor de espelhos, postos um de frente pro outro: vemos a história de Flex, sobre ela a história de Wallace, entre elas, a Legião das Legiões tentando escapar de seu universo moribundo, Flex com uma HQ sobre ele nas mãos… A multiplicação segue ad eternum, e Morrison quer mesmo que a gente fique com a pulga atrás da orelha: e se as nossas vidas não estiverem, também elas, sendo vistas por alguém, um sobre-humano de outra dimensão, que folheia uma HQ?
Ter lido Superdeuses antes de Flex Mentallo fez toda diferença. Não, eu não acho o livro uma maravilha não, mas acho que os conceitos da HQ ficaram bem mais claros tendo-o lido – eu eu pude aproveitar melhor a publicação da Panini. Porque, com tudo isso na cabeça, falo sem medo: Flex Mentalo – O homem dos músculos mistério é uma HQ ducacete! Pra ser lida e relida, colhendo os detalhes, tanto textuais quanto visuais, ir se abarcando da trama, dos personagens… Flex Mentallo é uma experiência, uma experiência tão poderosa que traz em si todos os elementos com os quais Morrison seguirá trabalhando nas suas obras posteriores: de Se7e Soldados a Crise Final, passando por Joe o Bárbaro (na verdade, isso deixa até um gostinho de picaretagem na memória: peraê, o Morrison tá falando a mesma coisa esses anos todos?).
Enfim: se você gosta de quadrinhos de super-heróis, de fantasia, se você curte a linguagem da arte sequencial, a noção de cronologia e uma bela pitada de sci-fi, Flex Mentallo: o homem dos músculos mistério é leitura obrigatória. E, data vênia, tenho dito!
Flex Mentallo: o homem dos músculos mistério, de Grant Morrison e Frank Quitely. Editora Panini, 132 páginas, capa dura. R$ 45,00.
Nota: 9
[Peraê que tem mais um pouquinho] estava pensando uma coisa: a Legião das Legiões é uma declaração/homenagem/referência ao mais arquetípico (junguiano?) super-grupo da história dos quadrinhos de supers, certo? (eu tô falando da Liga).
Na primeira edição de Planetary, na história “Pelo Mundo Todo”, o grupo de Axel Brass/Doc Savage é surpreendido… Por um simulacro da Liga que, diante da destruição iminente do seu mundo, invade a Terra de Planetary, dizimando o grupo do Dr. Brass.
Pois bem: os invasores de Planetary são, visualmente, a Liga da Justiça. Mas o ato deles é, evidentemente, o tomado pela Legião das Legiões de Flex Mentallo. Será que Warren Ellis quis homenagear um super-grupo clássico e uma HQ “clássica”? Nunca saberemos…