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A gente lemos: A Carta, de Carlos Felipe Figueiras e Rodrigo Martins

O momento que o mercado de quadrinhos brasileiro está vivendo é inegavelmente muito bom. Temos tido volume de produção e diversidade. Deixamos para trás alguns vícios (as linhas “teen”), adotamos outros (as adaptações literárias), mas vamos seguindo. Parodiando um episódio de Tiny Toons: “produzamos, e eles lerão”.

A Carta, título de estréia da editora Devaneio no mundo das minhas HQ’s, narra a história de Dimas, um negro liberto que se alista no exército imperial do Brasil para lutar na Guerra do Paraguai. Há anos em campanha, Dimas deixou para trás sua amada Dora, em busca do (prometido) soldo para enfim poderem se casar.

Acampados, sem forças de avançar sobre o forte de Humaitá, o exército aliado (brasileiro, uruguaio e argentino) está com o moral descendo pelo ralo. É quanto Dimas recebe uma carta. Mas ele não sabe ler e, pra piorar, os paraguaios resolveram atacar nesse momento!

A trama então se desenrola mostrando as dificuldades do soldado com a misteriosa correspondência, trazendo notícias de Dora. Carlos Felipe usa de um fato corriqueiro (um soldado analfabeto recebendo uma carta), com um pano de fundo histórico muito bem dominado para contar uma história bastante interessante. O caráter miserável da guerra (ainda mais da Guerra do Paraguai) fica evidente não só pelas cenas “do presente” que Carlos Felipe escreve (e Rodrigo Martins desenha, mas dele eu falo mais adiante), mas por seu contraste com as cenas do passado de Dimas, a real condição que o colocou na guerra.

É verdade que eu torci o nariz quando comecei a ler a sinopse, achando que A Carta seria uma “versão em quadrinhos” de “Ira – Xadrez, Truco e outras guerras”, de José Roberto Torero na série Plenos Pecados da Ed. Objetiva, que também tem cartas na Guerra do Paraguai. Mas essas são as únicas semelhanças entre o livro e a HQ – mas resultam em duas obras muito boas de se ler.

Na arte, o soldado Rodrigo Martins é uma gratíssima surpresa: um estilo firme, sólido e profundamente marcado pela estética dos desenhos animados. Seu traço é consistente, bonito e vale-se muito bem das cores. Sua arte é irretocável, espero mesmo poder logo ler mais produções com seu trabalho.

Infelizmente, aquele que talvez seja o principal problema da obra vem justamente do trabalho de Rodrigo Martins “Soldado”. Veja bem: ele está desenhando uma guerra. Tem sangue, tiros, buracos nos peitos, mortes na ponta da baioneta, mais sangue… E isso é ótimo, porque dá o realismo de tudo, mesmo com a arte cartoon. O problema é que trata-se de um álbum com um excelente contexto histórico, com notas de aprofundamento… Seria uma ótima aquisição para programas como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), oferecendo inclusive uma opção rica e original às já batidas adaptações literárias. O problema é que o sangue e as tripas com certeza trariam problemas com professores e diretores mais carolas (sim, aqueles mesmos que implicaram com Um contrato com Deus, do Einser), o que é uma pena.

Enfim, A Carta é uma HQ simples que carrega em si uma grata surpresa (principalmente pra molecada): mesmo temas da História podem ser muito interessantes e realmente instigantes. Ou, num resumo, se bem executado quase tudo pode dar certo.

A Carta. De Carlos Felipe Figueiras (roteiros) e Rodrigo Martins “Soldado” (arte). Editora Devaneio, 72 páginas, R$30,00. À venda no site da editora.

Nota: 7,5/10

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