Aproveitando todo o mimimi sobre “mulheres nos quadrinhos”, trago pra vocês este título que embora conheça a pouco tempo, “já considero pacas” e que faz tempo que eu queria resenhar aqui: a nova revista da Ms. Capitã Marvel, que a Panini está lançando por aqui em encadernados no mesmo esquema do Demolidor do Waid.
Na verdade, essa é também meio que uma resenha da primeira edição também, porque só comprei a segunda por ter gostado da primeira – o que veremos que talvez tenha sido um engano meu. O gibi da Capitã é mais uma tentativa da Marvel de emplacar uma heroína legítima num universo tão machista e patriarcal quanto o das HQs. E o primeiro volume até que consegue isso bem, dosando trama e boas doses de ação, posicionando a Capitã como um dos grandes no panteão da Casa das Idéias, inclusive passando (com louvor) no “teste de Bechedel”.
Pra quem não está familiarizado com o termo, o teste é uma forma não-oficial de avaliar obras de ficção quando a igualdade de gênero e se dá pelo seguinte (copiado do bechedeltest.com)
“O Teste de Bechedel (…) é um teste simples que enumera os seguintes critérios: (1) é preciso que tenha pelo menos duas personagens femininas, que (2) estabelecem um diálogo entre si, sobre (3) alguma coisa que não seja um personagem masculino.”
Ou seja, dado certa obra, caso esta passe por esses três critérios, nos dá um indicativo de que é igualitária no tocante a gênero, e isso não é fácil pois no site mesmo de onde traduzi (canhestramente) o Teste, existe uma lista EXTENSA de filmes e seriados que não passam, nem de longe, nas três regrinhas. Dá pra se surpreender com a quantidade de obras que não contém nem ao menos UMA mulher com fala. Realmente faz pensar quanto a “invisibilidade” que o gênero possui na ficção (Sue Storm que o diga!). E o título da Capitã passa com louvor no teste, sem abrir mão da ação e da porrada…
… mas que, numa segunda análise, você percebe como que consegue essa proeza (e não é só por ser escrito por uma mulher – Kelly Sue DeConnick)(Aliás, que porra de nome complicado…): o título, simplesmente, TRAPACEIA. Afinal, é muito fácil passar pelo Teste de Bechedel se a sua obra NÃO TEM PERSONAGENS MASCULINOS! Puxando aqui pela memória, temos no primeiro volume uma aparição rápida do Capitão América e algumas pontinhas aqui e ali do Homem de Ferro e apenas UM personagem fixo masculino só no segundo volume (além do vilão, que aparece bem pouco). E, aliás, esse personagem (o repórter fotográfico Frank Gianelli, que faz parte inclusive do passado editorial da personagem) é uma pista de que na verdade o título não promove a igualdade, mas sim uma inversão de polaridade no machismo nas HQs.
O cara é só um ACESSÓRIO. Ele serve para ser o interesse romântico da loirona, simples assim. É até engraçado ver por esse lado, porque conseguiram inverter toda aquela dialética da “donzela em perigo” colocando no lugar um personagem masculino – mesmo em suas atualizações mais recentes, onde surgem “donzelas com utilidade”, que mesmo sem poderes numa batalha, conseguem achar alguma serventia para os heróis (buscar informações, distrair o inimigo, etc). O cara é tão relevante quanto qualquer mulher coadjuvante em gibis “comuns”, e isso é bem complicado, porque mostra que o título – embora não tenha tons de misandria – promove antes um feminismo clássico do que um cenário igualitário.
No mais, pra não dizer que ao invés de resenhar fiquei apenas divagando, a história entra num arco maior mostrando diversos acontecimentos que giram entorno do grande vilão, que é revelado apenas na última página. Resumindo bem, Carol Danvers está com uma lesão cerebral grave, meio Rocky Balboa, com a diferença que ao invés de não poder lutar, não pode voar, correndo o risco de morrer caso o faça. É interessante, porque o primeiro volume consegue (com louvor) construir a personalidade da heroína enquanto piloto de caça militar extremamente competitiva, forte e independente. Eu sei: você, eu e toda a torcida do Florminense já vimos o memos mimimi-de-mulherzinha antes, que eu nunca disse que ser ORIGINAL, mas que é pelo menos legítimo. Mesmo que muitos momentos fique num “olhe pra mim, como eu sou porradeira e não fico devendo pra nenhum homem”, está de bom tamanho pra um quadrinho, não soando como um pastiche.
Mas é um trabalho bem insosso perto da recapitulação/retcon da origem da personagem apresentada no primeiro número. Cito como destaque somente a primeira história, onde a atual capitã encontra a anterior, Monica Rambeau, que até hoje pra mim é uma das melhores personagens femininas da Marvel (embora seja engraçado esse “encontro de explotations” – Feminismo X Questão étnica). O gancho final é fraco e o vilão um ilustre desconhecido, pelo menos para mim que não acompanho o lore da personagem. Mas, ao que parece isso deve impulsionar a trama para o surgimento da próxima capitã, que é o que eu queria desse título pra início de conversa. O jeito é aguardar, mas pelo menos não deu aquele sentimento de dinheiro perdido… quase.
Por fim, a Marvel talvez falhe nisso, em reconhecer que as meninas que leêm gibi GOSTAM de TODOS os heróis, independente do gênero do personagem, o que segura mesmo o público – seja ele mulher, homem, hetero, homo ou leitor do MDM – é o ROTEIRO. Se o argumento for uma desgraça não adianta enfiar um herói “latino, judeu, pobre e gay” que não vai vender. Ou pelo menos não deveria. Mas é o que acaba acontecendo.
Ficam no entanto sinais de uma iniciativa muito boa, e sigo aguardando aparecer a nova Capitã Marvel, adolescente e muçulmana, para ver se os novos ares do primeiro volume são de fato um novo fôlego para os personagens femininos nos gibis de linha da editora ou se aquele clima das primeiras edições foi só uma brisa passageira.
Capitã Marvel #2
Roteiro de Kelly Sue DeConnick e Christopher Sebela, arte de Dexter Soy e Filipe Andrade, cores de Veronica Gandini e Jordie Bellaire
132 páginas, cores, capa mole, R$ 13,90, Panini.
Nota: 7,5