Veja bem: tem certas coisas na vida que a memória não condiz com a realidade. Por exemplo, eu tinha uma memória muito boa do Deadpool do Joe Kelly, mas relendo esse ano não achei tãããão legal assim (talvez um de nós dois tenha envelhecido mal). A mesma coisa com o Namor do John Bráyne.
O contrário também é verdadeiro, de coisas que não eram tão boas e que, numa relida anos depois, conseguiram mostrar seu valor.
Como eu não tô conseguindo lembrar de nenhum exemplo pra esse caso, vou logo pro assunto do post.
É notório que eu não gosto do trabalho da Gail Simone. Acho fraco e superestimado: seu Deadpool/Agente X é nada mais que “ok”, suas Aves de Rapina são mais memoráveis pelas Sheila’s Mello’s que o Ed Bennes desenhava dando voadoras de perna aberta; e seu Sexteto Secreto… Era um imenso não-fede-não-cheira.
De todos os seus trabalhos que eu me lembrava de ter lido, a sua Mulher-Maravilha era o pior. Publicado originalmente aqui em 2008, ao puxar esse arco da memória eu me lembro de uma sitcom com gorilas albinos e um passeio ao pôr do sol sobre uma concha voadora de mãos dadas com Nêmesis. Bléh.
Mas calhou da Eaglemoss republicar a parte inicial da passagem da roteirista no título da Princesa de Themyscira no volume #17 da coleção de graphic novels da DC: o álbum O Círculo traz os quatro primeiros números das 30 edições que Gail escreveu.
O Círculo começa imediatamente após dois grandes (cronologicamente falando) eventos na vida da Princesa Amazona: primeiro a Crise Infinita (e 52) e O Ataque das Amazonas. Da primeira, a principal consequência é a alteração do status quo da personagem: Diana Prince é agora agente do DAM (Departamento de Assuntos Meta-Humanos) e ninguém sabe que ela é a Mulher-Maravilha – inclusive como Prince ela fica sem poderes. De “O ataque…” o que vale é que Hipólita está reinando em uma Themyscira sem habitantes: como castigo pelo ataque aos EUA, as amazonas foram espalhadas pelo mundo, feitas mortais, sem memória e sem condições de acessarem outra vez a ilha.
Beleza? Beleza.
Em O Círculo nós vemos duas tramas em paralelo: na primeira, Diana e Nêmesis descobrem através do Capitão Nazista que tropas de neo-nazistas descobriram a localização da Ilha Paraíso e que estão rumando pra lá. Na segunda, ocorrida no passado, vemos o surgimento e a derrocada d’O Círculo, a guarda de honra da Rainha Hipólita. Ah, e antes disso tem a bobajada inexplicável dos gorilas guerreiros albinos da Cidade Gorila (em 8 páginas eles vão de “guerreiros preparados para matar o Superman que estão enfrentando a Mulher-Maravilha como teste” à hóspedes engraçadinhos do apartamento da Amazona ¬¬). Obviamente a trama avança e, lá pelas tantas, o problema deixa de ser os nazistas para virar o enfrentamento do renascido Círculo: Myrtes, Cáris, Filomena e Alcione, que caíram em desgraça e foram presas pela eternidade após tentarem matar Diana ainda bebê.
A série tem seus problemas de condução (tipo a passagem de tempo, extremamente problemática), mas a pior de todas é, sem dúvida, a motivação das amazonas do Círculo: para sua líder, Alcione, Diana Prince é um perigo porque ela dividiria as amazonas. É por que ela faria isso? Se prepare porque a coisa fica tensa agora:
Gail Simone mostra que algumas amazonas, no exílio da Ilha Paraíso, estão enlouquecendo por conta de seus “úteros vazios”, fazendo com que sejam comuns os “bebês talhados”: bonecos de madeira, esculpidos na forma de bebês, verdadeiros fetiches carregados pelas amazonas. Alcione se preocupa tanto com isso que proíbe que sejam esculpidos bebês na ilha e manda matar uma amazona por ter feito isso (e enlouquecido no cuidado com a “criança”).
Por que Diana é um perigo? Porque uma criança de verdade geraria inveja (e guerra) entre as amazonas de “úteros vazios”!
Na lata: para criar a motivação da trama, Gail Simone embarca, em pleno 2008, num conceito de histeria (ou “doença do útero”) do século XIX (pra pegar a versão mais recente, vide o romance “O Homem”, de Aluísio de Azevedo)! Sério mesmo que é isso que a pessoa que criou o site Women in Refrigerators tem a nos oferecer? Mulheres que enlouquecem (ou se tornam assassinas por inveja) por não gerarem filhos?
“É só uma derrapada”, você pode dizer. E eu tendo a concordar, claro: qualquer grande escritor/a já deu um deslize vergonhoso, ninguém está ileso. O problema é que Gail Simone não deu uma só derrapada…
Em 2009 a Warner Bros Animation lançou em vídeo “Wonder Woman”, animação em longa-metragem da personagem, roteirizada pela Gail. É uma história de apresentação da personagem, com a queda do avião do Steve Trevor na ilha, ataques de Ares e coisa e tal. Quando as amazonas estão passando um perrengue para vencer o deus da Guerra, descobre-se que ele se libertou porque elas foram traídas por outra amazona. E por quê? Porque, segundo essa mesma amazona, ela queria viver o mundo fora da ilha, casar, ter filhos, constituir família!
Sério, Gail? Sério?
Ok, uma primeira leitura permite entender uma crítica “feminista“ nessas vilãs de Gail: talvez elas encarnem o risco do ideal patriarcal (casar, ter filhos, etc) à autonomia das mulheres. O sonho de integridade e liberdade das amazonas só é quebrado pelo resistente desejo de “normalidade” pequeno burguesa ocidental.
Porém, em “O Círculo”… temos uma Alcione (e, antes dela Gennes, a amazona que Alcione manda executar) verdadeiramente enlouquecida pelo útero vazio. Ok, se essa é a crítica, ela até tem alguma razoabilidade mas… me parece que ela faz a volta e vira uma resposta discriminatória à uma discriminação. Me explico: ao transformar em vilãs (que terão a morte como pena) as mulheres que querem seguir o sonho patriarcal (mesmo que em número reduzido ante à população de amazonas), Gail substitui um modelo único de felicidade (só é possível uma mulher ser feliz com família e filhos) por outro modelo único (só é possível uma mulher ser feliz sem família ou filhos): quem quer ter filhos é louca, má, traidora e merece a morte.
E se isso não fosse ruim o suficiente, na sequência de “O Círculo”, Gail investe em construir um romance entre Diana e Nêmesis que é em tudo muito tradicional – com direito até a passeio de concha voadora à luz do pôr-do-sol. Passamos de histeria à esquizofrenia…
Reler O Círculo deixou claro porque minha memória da história é tão ruim. Não, ela não é uma péssima HQ da Mulher-Maravilha: a Princesa Amazona já viu arcos MUITO piores. O problema é a promessa: com toda uma bagagem nas discussões sobre a relação entre os sexos, Gail vem fazer… mais do mesmo. Fico pensando qual seria a repercussão dessas histórias se elas tivessem sido escritas, sei lá, por John Byrne. O céu teria caído na cabeça do canadense…