Ano novo, vida nova e, como de costume, é hora de fazer um postzinho aqui no MdM, pra dar a entender que tudo vai mudar, que vão rolar publicações periódicas aqui e… não passar da primeira. Mas vai que dá, né?
Pois bem, esse ano resolvi publicizar mais minhas leituras. Usei o Instagram pra isso e roubei educadamente a tag #departamentodeleitura2021, que o Érico Assis usa no Twitter e taca-lhe pau.
Daí que, ao escrever uma mini resenha sobre a segunda Graphic MSP do Jeremias, achei que valia um texto mais detido. Ei-lo.
Cê lê se quiser.
Iniciado no já longínquo ano de 2012 do mundo pré-pandemia, o selo Graphic MSP chacoalhou o mercado de quadrinhos brasileiro. Profissionalizou muita gente, apresentou uma moçada muito talentosa para o grande público (como a Lu Cafaggi e o Shiko, pra ficar só na primeira leva) e acredito sinceramente que ainda demora um tempo para entendermos a real dimensão do impacto dessa iniciativa.
Mas a verdade é que, não havendo mal que não se acabe, nem bem que sempre dure, um efeito lógico começou a rolar com a expansão do selo, e o ar de novidade foi passando, muita gente foi deixando de acompanhar as publicações sistematicamente, eu incluso.
Em 2019, Jeremias: Pele (que tive o prazer de servir como leitor-sensível do roteiro original) retomou esse frescor. Rafael Calça (de Jockey e Crônicas da Terra da Garoa) e Jefferson Costa (de La Dansarina e do premiadíssimo Roseira, medalha, engenho e outras histórias) se juntaram novamente e produziram a GMSP capaz de carregar para casa o prêmio Jabuti de 2019.
Não, não é pouca coisa.
E sim, foi merecidíssimo (mas eu sou extremamente suspeito para dizer isso).
Obviamente, se uma coisa tá funcionando, o lance é fazer mais dela, isso não é novidade para ninguém. Assim foi anunciado Jeremias: Alma, a continuação, prevista (e lançada) ano passado, 2020.
Comentei isso no Instagram e repito aqui: nosso impulso é dizer que Rafa e Jeff “conseguiram de novo”, mas isso não é justo (e esse foi um recurso que usei quando fui falar de “Roseira, medalha…”, mas com outro viés). Porque acompanhando o trabalho dos dois, percebe-se que, colocadas entre parênteses as diferenças de exposição e alcance, ambas as graphics do Jeremias são absolutamente coerentes com a carreira dos dois. Não a toa, em 2020 o Jefferson estava lá no Jabuti de novo, correndo risco de levar um bicampeonato pra casa, com o seu esplendoroso “Roseira, medalha…“, seu primeiro trabalho solo.
(o Rafael tem uma carreira distinta, é um “trabalhador da escrita”: participou da elaboração do espetáculo musical da MSP – o Circo Turma da Mônica – Brasilis, escreve nos gibis de linha da editora e assim acaba tendo uma carreira “menos visível” do que a do seu parceiro, concentrada em álbuns especiais)
Em “Pele”, ambos tinham o desafio de trazer ao centro do palco um personagem que sempre esteve nos bastidores. Um desafio e tanto que, como já disse, eles tiraram de letra. Não só dando o protagonismo a um personagem do quinto escalão da MSP, mas também a um assunto tão vilipendiado que nem ranking tinha: o racismo brasileiro. Os autores pegaram suas experiências pessoais e polvilharam aqui e ali para fazer com que Jeremias descobrisse (e se orgulhasse) de quem ele é.
Em “Alma”, era esperado (claro) que a questão racial se fizesse presente de novo, mas era preciso algo novo – quantas sequências ruins nós já vimos nessa vida e que foram ruins justamente ao se darem por satisfeitas em repetir tudo o que deu certo na abertura?
Se no primeiro álbum Jeremias olhava para si mesmo, em “Alma” vemos o desdobramento imediato disso e agora, sabendo quem é, o garoto precisa descobrir de onde ele veio para ser quem é.
Assim, Rafael e Jefferson estabelecem o cenário para mudar o foco das lentes: diminui o contexto mais individual, de um garoto-negro-brasileiro se dando conta do que ser isso quer dizer, e ganha mais espaço o plano coletivo, o que foi (e é) a história da população negra no Brasil.
É importante destacar que estou falando de mais espaço/menos espaço. Assim como no primeiro álbum, os dois polos estão presentes, o que muda é o quanto temos de cada. A questão coletiva e histórica estava lá em “Pele” (oras, temos o Jeremias descobrindo o avô materno, se admirando com o chefe negro do Astronauta), e a questão individual também está em “Alma” (todo o arco envolvendo o Pierre Valentim é isso), porque nada disso existe isolado: pensar em identidade social (é disso que ambos os gibis tratam) é tanto falar de sujeitos quanto de adesões e memórias compartilhadas. Uma coisa não existe sem a outra.
Em “Alma” (assim como em “Pele”) os autores nos fisgam com o detalhe, com o “pequeno”: o diálogo de apresentação da Vó Tereza, com ar calculado pra soar meio vilã, seu desdobramento e, logo na sequência o passeio a todos os antepassados é arrasador. Assim como é arrasador o projeto da área de empregados da nova casa da família Jeremias, ou a angústia dos pais diante do grande sonho/desafio de muitos negros no Brasil – a casa própria.
Eles também dizem muito no que calam: o não-diálogo do pai de Jeremias com o filho antes de dormir é tocante. Muito pouco é dito, porque muito pouco há para se dizer, porque mais não existe. Tanto não existe que, centrada nas histórias, “Alma” trará uma cena espetacular em que Jeremias ficcionaliza o que não existe. Constrói (uma) própria história de si e dos seus.
Não sei se deu pra perceber, mas pra mim foi difícil escrever esse texto sem me referir sempre ao quadrinho anterior, mas espero que não tenha ficado com cara de comparação, porque isso é algo que nunca quis fazer. O que quis deixar marcado é que Jeremias: Alma talvez seja a melhor continuação que me lembro de ver em muito tempo, de qualquer coisa. Ela não te deixa sentir saudade do original porque você sabe que ele continua ali, ao mesmo tempo que deixa evidente que há muito de novo a ser dito.
Citei en passant, mas acho importante frisar como o Calça está afiado nos diálogos. Nenhum pesa, os assuntos são sérios e ninguém está dando palestra. O Rafael acertou uma conta muito difícil entre explicitar as coisas no texto ou mostrá-las mesmo sem dizer nada. Meu destaque nesse sentido (além do já comentado diálogo de pai e filho na hora de dormir) é a cena em que Jeremias e a avó Tereza plantam uma semente no quintal. Aquele diálogo é incrível, e é incrível como os atores se completam em cena. Não sobra nada, não falta nada.
Na arte, oras, todo mundo sabe que eu sou fanboy do trabalho do Jeff, nunca escondi de ninguém. Acho impressionante como ele consegue, com uma arte altamente estilizada, imprimir tanta expressividade nos personagens. Acho, tenho quase certeza, que no conjunto da obra ele é o desenhista que mais me fez chorar. Mas tenho um destaque especial a fazer quanto a “Alma”: todo o experimentalismo na narração da história pela Tia Nancy ficou sensacional. Tem um quê radicalmente inesperado de Sergio Toppi, uma coisa muito potente.
Ah, é legal como, mais uma vez, Rafa e Jeff são os que melhor nos lembram que as histórias do Jeremias estão inseridas num universo maior da MSP. No primeiro tivemos o Astronauta (e sua equipe da B.R.A.S.A.) conforme desenhados pelo Danilo Beyruth, e aqui temos um certo indiozinho inserido no passado da trama. Tudo é orgânico, sem aquele lance (que tá na moda) de disfarçar uma história ruim com biscoitos (na forma de referências) ao leitor. Inclusive, quando chegam os momentos das referências, elas estão lá, perfeitamente evidentes, dando um recado para além da referência pela referência. Os convidados e lembrados na livraria têm o mesmo efeito da acachapante página dupla “O que você viu?” de Jeremias: Pele – chamar a atenção do leitor do quanto de gente que, no corre do dia a dia, na invisibilização do branqueamento, ele pode ter deixado de ver.
Enfim: coisa linda demais. Se eu fizesse lista de melhores do ano, certamente que Jeremias: Alma estaria lá. Como não faço, digo: dos melhores do ano de 2020.
Graphic MSP Jeremias: Alma, de Rafael Calça (roteiros) e Jefferson Costa (desenhos). Editora Panini. 96 páginas, colorido, R$44,90.