De Destemido a She-Hulk – Traduzir ou não traduzir?

Esses dias aí pintou no mundo a notícia de que a atriz Tatiana Maslany vai interpretar a Mulher-Hulk na vindoura série de Tv do Disney+.

Peraí, quem é “Mulher-Hulk”? Porque se você ler as notícias sobre, pode vir aqui e discordar de mim dizendo “Não, Porco, ela vai interpretar a She-Hulk. Essa Mulher-Hulk aí ninguém falou nada sobre!

Sim, eu tô exagerando. A exclamação é um exagero, mas a afirmação inicial, não.

O Brasil tem uma história engraçada com as adaptações de nomes: de um longínquo momento de “hiperadaptações”: Peter Parker já foi Pedro Prado. Bruce Wayne, Bruno Miller, um magnata da sinistra cidade de Riacho Doce, a qual ele protegia fantasiado de Homem-Morcêgo (ou Morcego Negro, segundo o Dicionário do Morcego, de Sílvio Ribas). E o Clark Kent, digo, Eduardo Kent, que tinha uma queda pela Miriam Lane? (não sei porque cargas d’água mantiveram o “Kent”. O “Lane” ainda vá lá, apesar de incomum ainda é um sobrenome presente no Brasil).

Pra fechar a Trindade da DC, a Mulher-Maravilha chegou aqui como Super-Mulher pela editora Orbis, em 1953 (que fazia algum sentido acidental: quando propôs a personagem à DC Comics, William Marston queria nomeá-la como “Suprema, the wonder woman“, em oposição ao Superman). Em 1966, ao estrear pela Ebal, ela seria chamada de Miss América, e só no final de 1977, por conta do seriado de Tv (estrelado pela Lynda Carter), foi rebatizada de Mulher-Maravilha.

Provavelmente essa fase do “adapta tudo” foi reflexo de uma questão legal: já vigoraram por aqui normas de traduzir tudo, como ocorre em Portugal. É assim que nasce a nossa tradição de subtítulos redundantes nos filmes, quando o título é meio intraduzível ou a tradução indesejável.

Depois dessa bizarra fase de super-tradução, as adaptações (e as cores também, mas isso é prosa pra outro momento) entraram numa estabilidade. Buscando por alto, somente a Abril publicou o último filho de Krypton como Super-Homem de 1984 a 2000, ininterruptamente (ok, o Super não é o melhor exemplo, já que a Gazetinha, ainda em 1938, já o trouxe pra cá como Super-Homem). O nome só mudou quando a linha Premium da mesma editora Abril entrou em cena e homogeneizou o nome do personagem com a grafia gringa: nascia o Superman (lá se vão vinte anos).

Mesmo nessa estabilidade, poderíamos ficar aqui tecendo uma série de traduções que, apesar de estáveis, são meio “Ué”, para o bem e para o mal: Demolidor (Daredevil, que já foi Desafiador Destemido, Atrevido – o desenho do Aranha dos anos 1990 também dava um texto por si); bem como seu arqui-inimigo, o Mercenário (tradução de Bullseye); Ricardito (para Speedy. Inexplicável); Joel Ciclone (que era Flash, mas na adaptação focaram no Jay Garrick); Ajáx (para Martian Manhunter. Sempre achei que o Ajáx era pra referir à mitologia grega e não ao alvejante. Mas começo a pensar que podem ter focado mais do que devia no “X” do uniforme); Magnum (para… Wonderman. Nunca entendi essa. Será efeito Tom Selleck?); Harpia (para Mockingbird. É tudo ave, mas uma é de rapina e a outra, um passarinho); o marido dela também, Gavião Arqueiro (Hawkeye); ou Nuclear (pro Firestorm, que já foi Tempestade no desenho dos Superamigos).

“Traduzir é trair”, disse alguém importante que eu não sei o nome.

E aí eu, mero leitor, não tradutor (ainda que não raras vezes me veja brigando com algumas traduções aqui e ali), fico pensando que, no traduzir, a pessoa responsável provavelmente leva algumas coisas em consideração.

Coisas tipo a inteligibilidade/capacidade de comunicar. A gente já se divertiu muito com o Lojinha, digo, minhas sobrinhas, tentando pronunciar My Little Pony (virou Málinopôní) ou Tinkerbell. Nomes de produtos/personagens muitas vezes são criados para dizer algo. Meu querido pônei diz algo para as crianças brasileiras que My Little Pony não diz. A tradução traz ganhos de compreensão.

Outra coisa diz respeito à sonoridade/capacidade de pronunciar: poderia insistir na série ícone do Lojinha, mas tem outros exemplos. Volto à Mockingbird/Harpia ou, da minha lista, aquele que considero o melhor exemplo de todos, Daredevil. Se você lembrar que quadrinhos de super-heróis são dirigidos, na origem, ao público infanto-juvenil, vai perceber que Mockingbird, Daredevil e Martian Manhunter são verdadeiros trava-línguas.

Porém, se você é um velhaco como eu, você certamente percebeu que, de uns anos pra cá, as coisas começaram a ser destraduzidas:

Meu exemplo mais remoto depois do Super-Homem/Superman, é Guerra Nas Estrelas, que virou Star Wars.

Depois o Ursinho Puff virou Ursinho Pooh, Jornada nas Estrelas caiu no esquecimento diante de Star Trek. E minha prima Miss Pig parou de assediar Caco, o Sapo, para se engraçar com um tal de Kermit.

Por trás de toda essa movimentação, uma questão mercadológica: essas coisas são marcas. Antigamente, as economias eram localizadas – empresas locais adquiriam os direitos sobre determinadas marcas e produziam as coisas em solo nacional – logo, podiam colocar o nome que a coisa deveria ter no país. É assim que temos no Brasil Falcon e Comandos em Ação como coisas diferentes, enquanto que os (tadinhos!) norte-americanos só têm G.I.Joes (uns com tamanho de Barbie, outros com tamanho de hominho): a Brinquedos Estrela comprava os direitos (e as matrizes) da norte-americana Hasbro e colocava sua fábrica para rodar. Assim, entrava um G.I.Joe Snake Eyes (3 3/4pol) e saía um Comandos em Ação Cobra Invasor (inclusive essa é outra adaptação mais profunda e radical: como a primeira leva de G.I.Joes pequenos não tinham vilões, a Estrela decidiu que um deles seria do mal: pegou o boneco que era todo preto – preto é mau, né? – e meteu nele um símbolo do C.O.B.R.A.).

Mas o final dos anos 1990 bateu o martelo, jogou a cal em cima da noção de “economia local”: na escola a gente começa a aprender coisas como “Globalização”, “Zona de Livre-Comércio”, “Economia Global”.

A grande questão era: porque a Hasbro cederia uma marca sua a um terceiro se podia, ela mesmo, instalar uma fábrica num centro fabril de baixo custo (a China, Taiwan), produzir lá os seus produtos e ela mesma vender no mundo todo? Chega de atravessadores: a mesma Hasbro norte-americana idealiza, projeta, manda produzir, vende e lucra.

Mas aí tem um gargalo: tem uns países, teimosos como os gauleses de Asterix, que insistem em não falar inglês, vê se pode? E não satisfeitos em continuar usando seus idiomas bárbaros, esses mercados também consolidaram determinados produtos com nomes locais! QUE ABSURDO!

Como explicar a estes bárbaros que aquele caderno capa dura que custa o triplo do brochurão regular e tem uma fadinha escrito Tinkerbell é o original e que o mais barato escrito Sininho é que é a cópia?

Se no tempo do “minha tia trouxe do Paraguai” a gente tinha se acostumado a observar que o original chamava Sony, logo, Suny, Somy, Soni ou qualquer outra variação indicavam imediatamente cópias, falsificações que mudavam uma coisinha ou outra pra fugir de determinadas responsabilizações (um produto “Suny”, apesar de ter o mesmo layout de um produto Sony, por exemplo, ao não imitar a marca, passa a ser enquadrado como réplica/similar e não mais como produto pirata/falsificado).

Oi, eu sou o Kleiton. Sim, todo mundo fala que eu lembro aquele rapaz, como é mesmo o nome? Kratos, né? Mas é só coincidência, viu?

Para resolver esse problema (e outros decorrentes) as indústrias, as grandes criadoras de marcas, passam por processos de rebranding ou, em bom português, homogeneização de marca.

MORTE AOS REGIONALISMOS! NEVERMORE NOMES LOCALIZADOS!

Citei o caso da Sininho/Tinkerbell (apenas a da Disney. A de J.M. Barrie continua Sininho), do Ursinho Puff/Pooh; Guerra nas Estrelas/Star Wars, etc. Agora se pode produzir um buzilhão de produtos, pôsteres e o carvalho lá no centro fabril na China e vender em praticamente todo lugar sem grande esforço – no máximo com um adesivinho tosco e mal colado com a idade do público-alvo, especificações técnicas, lista de ingredientes ou, na pior das hipóteses, um manualzinho de instruções em papel vagabundo e formato sanfona. O resto é só contar o vil metal.

A gente pode até ficar #xatiado quando isso acontece, mas vamo lá, não tem muito que se possa fazer: se o dono da bola falou que agora o jogo é de dois toques, ou a gente aceita ou sai da roda.

(Eu tive que me policiar muito para não escrever “Superman” quando queria me referir a “Super-Homem” neste texto: quando mudou, eu falei que ia resistir, que não ia aceitar a troca mas… vinte anos, né cara? Teve coisa mais importante pra gastar energia nesse tempo)

(e em alguns casos, por mais que role uma preferência afetiva, a gente tem que admitir que a adaptação não funciona. Eu cresci com o Ajáx e acho Joel Ciclone muito simpático, mas…)

Mas veja bem: até onde se sabe, isso explica alguns casos, mas não todos.

Veja o caso dos heróis no cinema: tem filme chamado “Capitão América”, “Vingadores”, “Homem de Ferro”. “Doutor Estranho”. O último filme da DC a causar algum furor foi “Coringa”, e vem aí “Mulher-Maravilha 1984”.

Sim, você leu certo: não é Captain America, Avengers, Iron Man ou Doctor Strange, tampouco Joker ou Wonder Woman ’84.

Então por que a nerdaiada anda falando por aí os nomes em inglês? Por que a Tatiana Maslany vai encarnar a “She-Hulk” e não a Mulher-Hulk se, até onde sabemos, não há nenhuma determinação da Disney/Marvel de homogeneização de marca da personagem?

Ok, é engaçado (e triste) quando isso acontece. Mas a culpa é do tradutor ou do designer?

Eu tenho duas hipóteses:

  1. A ignorância e pirataria: Minha mãe, a sua provavelmente também, nunca leu um gibi na vida, mas conhece a Mulher-Maravilha. A Mulher-Hulk? Nem tanto, o Dr. David Banner não tinha uma prima verde. É uma personagem que muita gente nunca ouviu falar e, ao vê-la ganhar os holofotes, recorre à fonte original e depara com o material em inglês. Exatamente o mesmo mecanismo aparece aplicado na pirataria: nas poucas vezes que tentei acessar quadrinhos em scan, era carne de vaca topar com um personagem que, apesar de existir uma tradução regular para o nome, aparecia no original. Que atire a primeira pedra quem nunca trombou com uma Google Tradução na locadora do Ultra e ZÁZ, tá lá o nome original no meio que nem um pedregulho no feijão.

2. Viralatismo e pedância: Mas na real mesmo, o que eu acho que está por trás de quem fala que é fã do Áironmén, que curte pra caramba o Ispáider, que achou o filme do Jóquer muito doido mêo ou que adorou a escolha da protagonista de Chirrúqui é… o bom e velho viralatismo brasileiro, que sugere que coisas banais, quando ditas em inglês, ficam mais chiques ou importantes.

É o tipo de coisa que o Bruno Nerd (do site Nerd Bravo) ou o Peter Pan, do canal Whey Nerd, diriam (e dizem).

É o mesmo movimento jacu que faz de serviços, jobs. De casos, cases. Que fala em atingir os mais highstakes para mudar o mindset.

É uma galera que, falando de maneira fútil de coisas fúteis (nenhum problema aí), quer dar ares de perfume francês. Quer dar uma roupagem de refinamento e profundidade (olha, é em Inglês!), apesar de tratar um objeto banal de forma rasa e grosseira.

Trocando em miúdos: é a velha estratégia de botar banca com o balaio vazio, ou no baralho, pedir truco com um 7 de paus na mão.

No fim, acabam reiterando o que aquele velho barbudo de Northampton disse: é uma moçada que se recusa a crescer.

Grow up, man!

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