Outro dia fiz uma thread no Twitter sobre uma treta (mais uma) no universo dos quadrinhos no Brasil, e você sabe como é: hoje tem treta, amanhã não tem treta, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será… Então o objeto da contenda mesmo interessa pouco.
Mas teve um comentário meu no meio da thread, um comentário de transição, mas que acabou gerando uma pequena (e interessante) discussão:
Foi essa a questão que (acho) vale uma discussão mais ampla.
E o lance é: eu não acho que há um mercado de quadrinhos no Brasil, acho que há uma cena de quadrinhos.
Antes de embarcarmos na discussão em si, preciso fazer uma mea culpa: parte culpa minha, parte da plataforma, o fato de que essa distinção é uma escolha pessoal minha, não ficou evidente. Pelo contrário, ficou com cara de conclusão, algo taxativo: “a Terra é redonda, não é plana”.
Então que fique registrado: eu, Lucas “Poderoso Porco” Ed., prefiro ler o — e me referir ao— cenário brasileiro como cena, ao invés de mercado.
Feito esse breve desvio, vamos ao busílis, mas por partes:
Pra começar: o que configura um “mercado” de alguma coisa?
Porque essa é a primeira coisa que, por exemplo, o Afonso Andrade (da Fundação Municipal de Cultura de BH, e que todo mundo conhece por seu trabalho com o FIQ) levantou:
“[…] Podemos falar sim de mercado. Mercados tem tamanhos diferentes. Se temos editoras, distribuição, venda e consumo, com regularidade, temos um mercado. Pra mim cena, tem mais a ver com a parada artística, tendências, estilos.”
A questão então é como se definir um mercado, porque precisamos ter clareza nos conceitos pra saber se eles se aplicam ou não.
O problema é que, bem, não sei se você sabe, eu sou psicólogo de formação.
Em termos de ensino institucional, eu saí do ensino médio, fiz cursinho pré-vestibular, daí pra graduação em psicologia, dela para um mestrado em psicologia social e, por fim, um doutorado no mesmo campo.
Não pense que eu estou dando carteirada. Na verdade, tô dando a anti-carteirada: quero te mostrar que eu sou um zero à esquerda em termos de economia, mercados e coisas correlatas.
Daí fui atrás de quem pudesse esclarecer esse conceito aí. Primeiro fui no Auréliozão véi de guerra mesmo, e lá tá assim:
Mer.ca.do sm. […] 2. Econ. Qualquer situação em que compradores e vendedores em potencial entram em contato. 3. Econ. O conjunto dos mercados.
Mas achei que tava pouco. Que nesse comprar e vender, comprei menos do que precisava. Então pedi a um amigo para que, como dizia Joe Miller (o personagem do Denzel Washington no inesquecível Filadélfia), me explicasse como se eu tivesse cinco anos de idade o que usamos para definir um “mercado”. Ele me disse o seguinte:
Teve mais coisa na conversa, mas acho que aí tá suficiente. No resumo: se há um espaço (tome “espaço” num sentido mais amplo, não fisicamente limitado) em que ocorre oferta, demanda e consumo de um produto e serviço, temos um mercado. Esses atos (oferta, demanda, consumo) podem se dar por trocas monetarizadas ou não. Além disso, uma economia de mercado é descentralizada, com diferentes agentes operando nesse espaço.
Oras, então voltemos aos quadrinhos no Brasil: há demanda (por produtos, como revistas em quadrinhos, ou serviços, como de editoração, tradução, etc); logo, há produção e oferta desses mesmos produtos ou serviços; há o consumo dessa oferta, mediante alguma forma de troca (por outros produtos e serviços, ou por moeda); e isso tudo é feito por diversos atores simultaneamente.
Ainda que o Felipe tenha feito a ressalva de que isso é o básico do básico — mais básico do que isso, só se voltarmos ao Aurélio — acho que é suficiente. Pra dar aquele toque final, a gente pode acrescentar uma coisa que está subentendida nas definições, mas que foi o Afonso quem nomeou: o tamanho não é um critério para definirmos se uma determinada situação constitui um mercado ou não.
Looooogo, a universo dos quadrinhos no Brasil compõe um mercado.
Se é mercado, então por que c@£@|%0$ eu prefiro “cena”?
Bem, a primeira vez que usei conscientemente “cena” (em oposição a mercado) para me referir à produção de quadrinhos no Brasil, foi no FIQ do ano passado, quando o Pedro e a Mari, do Fora do Plástico, conversaram comigo para a cobertura que estavam fazendo do evento. Eu e a Amma, com quem dividi a curadoria daquela edição, tínhamos escolhido como tema “Quadrinhos e mundo do trabalho”, então questões como “do que vivem os quadrinistas do Brasil?” ou “Quantas atividades há em torno da produção de um álbum de quadrinho que geram renda?” ou ainda “Como os quadrinistas brasileiros fizeram dinheiro nos anos mais duros de isolamento social?”.
E foi pensando nessas questões e em outras, trocando ideia aqui e ali com roteiristas, desenhistas, editores, tradutores (e por aí vai), que cheguei à seguinte conclusão:
Quer dizer, é inegável que o Brasil tem uma cena pulsante de quadrinhos. Por “cena” me refiro ao conjunto das pessoas que produzem, editam, traduzem, consomem, penam e conversam sobre, pesquisam, vão a eventos, enfim, que gastam tempo com histórias em quadrinhos.
É um conjunto incontestavelmente grande, que abarca da Panini à garota que levou seus primeiros desenhos para serem avaliados por um editor no FIQ. Vai do colecionador velho com dezenas de milhares de gibis na prateleira, ao menininho que comprou um álbum independente com vale livro. Passa pelo gibituber, pela acadêmica que utiliza HQs em sua pesquisa de pós-graduação. Engloba até a mim, escrevendo este texto, e você, lendo-o.
Percebe que, diferente do que o Afonso pontuou, quando falo em “cena” não estou pensando especificamente no caráter artístico da coisa, suas escolas, movimentos, tendências. Sim, cena engloba isso, mas vai além.
Assim como concordamos lá em cima que há um mercado de quadrinhos no Brasil, acho que concordamos que há uma cena de quadrinhos rolando também.
Então é pra usar mercado ou cena, caramba?
Como a ditadura cosmonista ainda não chegou, este segue sendo um país livre, e você pode usar o que quiser.
Sério, vai lá. Seu discurso, suas regras.
Mas já que você chegou até aqui, acho que cê aguenta mais uns dois dedinhos de prosa, né? Então vamos.
Há um mercado E há uma cena. O negócio é, por um lado, entender como essas duas definições se articulam e, por outro, definir qual é o mais adequado a ser usado.
Sobre a articulação, acho que a melhor definição é a do Daniel Werneck, quadrinista e professor da Escola de Belas Artes da UFMG:
O mercado está incluído na cena, mas a cena é mais do que o mercado.
Acho que, do ponto de vista formal, o de hoje tá pago: tem cena, tem mercado, o primeiro engloba o segundo, todo mundo feliz.
Mais importante do que isso: você realmente pode usar o que quiser, a depender do que você quer chamar atenção. E é aqui que eu entro de fato na prosa.
Depois dessa monografia toda, te dizer que continuo preferindo usar cena no lugar de mercado. E, como falei no começo, essa é uma decisão pessoal.
E porquê cheguei a essa conclusão? Ok, o mero fato de existirem trocas já estabelece o mercado, mas vamos além: no imenso contingente de pessoas que participam dessas trocas no Brasil, quantas pessoas auferem renda dessas trocas? Sim, pra mim a coisa toda é uma questão ligada ao vil metal mesmo. Cascalho. Bufunfa. L’argent. Tutu.
Olhe a quantidade de pessoas envolvidas no Brasil. Foque num recorte específico desse grupo, isto é, aqueles que produzem os bens (os quadrinhos em si) ou fornecem os serviços.
Quantos desses vivem daquilo que fazem nesse mercado?
Percebe onde quero chegar? O Brasil está abarrotado de gente talentosíssima que desenha seus quadrinhos entre um job na publicidade e outro; que escreve grandes roteiros aos finais de semana ou no meio das sonecas do bebê; que grava um vídeo às 22h de uma quarta-feira, cansado do expediente da firma, detalhando uma obra espetacular que acabou de sair em Bangladesh e sobre a qual você dificilmente ficaria sabendo se não fosse por esse vídeo.
Desse mar de gente que compõe a cena dos quadrinhos no Brasil, a grande maioria não está vivendo disso. Como gosto de dizer, estão nessa por esporte. Empenham tempo, saúde e dinheiro nessa atividade sem perspectiva de retorno adequado.
E quando chamo atenção pra isso, não quero encarnar o velho reacionário: “é assim mesmo, porque quadrinho é um trem desimportante, coisa de criança, adultos têm de fazer coisas sérias pra viver”, longe de mim. Quero fazer exatamente o contrário. Quero chamar atenção para a necessidade — sempre urgente porque sempre atrasa — de fortalecermos o mercado de quadrinhos no Brasil, de modo a possibilitar que mais pessoas vivam do seu trabalho nesse meio.
E isso é tão importante quanto velho: um dos meus artistas favoritos da vida, Flavio Colin, em 2000 disse à Folha que HQ no Brasil é um sacerdócio, uma missão*.
Mas óh, desde que larguei a religião, tomei birra desse trem de sacerdócio, de missão. Nem relógio trabalha de graça! Artistas (roteiristas, desenhistas, coloristas, letristas), editores, tradutores, designers, distribuidores, vendedores… quem trabalha deve receber o devido pelo seu trabalho oras, e deve ser possível viver dessa trabalho, caramba!
*(toca a Internacional)*
Então é isso: prefiro usar cena, pra chamar atenção de que nesse rolê tem MUITO MAIS GENTE envolvida do que aquelas que participam, efetivamente, das trocas que ocorrem nesse mesmo rolê — e vou continuar usando.
Você faz como preferir.
- A citação do Colin eu tirei do texto do Ivan Costa em “Terror no Inferno Verde”, da Pipoca & Nanquim.
- Este texto também foi publicado do All Inclusive Comics.