A gente vimos: O retorno de Arquivo X (com spoilers)

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Parte do zeitgeist atual (retorno de séries sem remake e levando em consideração o tempo passado), Arquivo X retorna em um mundo completamente diferente de quando foi veiculado pela primeira vez. Um mundo, diga-se de passagem, que ajudou a criar.

Muita água rolou nestes 14 anos em que Arquivo X esteve ausente. O 11 de setembro aconteceu (ok, aconteceu enquanto a série ainda existia, mas você entendeu). O conservadorismo voltou a crescer em todo o mundo. A tecnologia mudou a forma como interagimos com o mundo e com as outras pessoas. E a necessidade de recompensa imediata contrasta totalmente com uma série cuja especialidade era manter mistérios. Por outro lado, o mundo ficou muito mais paranoico, e diversas maluquices que pareciam ficção científica duas décadas atrás hoje são realidade.

O retorno de Arquivo X (que começou sendo chamado pelo estúdio de “um evento” e logo passou a ser chamado de décima temporada – o que certamente diz muito sobre o futuro da série) foi comemorado pelos fãs e, após a estreia, pela FOX, que viu na audiência do primeiro episódio como foi uma boa ideia trazer o programa de volta. Valeu a pena? Para quem era fã, com certeza. Mas não sei dizer se Arquivo X foi bem sucedido em trazer novos fãs a esse universo.

Para quem não sabe, ou quem não lembra, Arquivo X segue a vida dos agentes do FBI Dana Scully e Fox Mulder, que investigam casos paranormais numa divisão non grata do Bureau chamada “Arquivos X”. Durante os 9 anos em que a série foi veiculada, fomos expostos a uma conspiração existente desde 1947 e formada por homens que entregaram pessoas chave de sua família numa barganha com alienígenas para garantir sua sobrevivência após uma invasão que ocorreria em 2012. Nessa jornada, Scully e Mulder foram abduzidos, tiveram um filho que entregaram para adoção porque ele talvez fosse metade alienígena e a conspiração o queria, moraram juntos e tiveram dois filmes, um bem sucedido na bilheteria, outro nem um pouco.

Corta para 2016. Arquivo X retorna para uma série de 6 episódios em que Mulder e Scully estão separados. Mulder foi diagnosticado com depressão e se tornou insuportável de conviver, e Scully, começando a sentir a culpa por ter entregado seu filho para adoção, se afunda no trabalho. Neste cenário, os dois personagens são envolvidos numa nova conspiração (com os mesmos atores de antigamente) por um conservador que tem um canal no youtube e adora teorias de conspiração.

Nesta nova conspiração, que subverte tudo o que tínhamos aprendido nas temporadas passadas, a conspiração de homens não trabalhava com os aliens, e sim se aproveitando deles, para um dia tomar os EUA com tecnologia alienígena escondida nos último 70 anos.

O grande destaque deste retorno, no entanto, não é a história, e sim seus protagonistas. David Duchovny e Gillian Anderson possuem uma química rara e se sentem muito à vontade trocando figurinhas, e a história dos dois personagens segue em frente de forma realista e bastante humana, onde qualquer pessoa adulta conseguiria se identificar (mesmo que não tenha sangue alien nem sido abduzida). Neste ponto, Arquivo X tem o mérito de fazer muito mais pelos seus personagens do que pela própria mitologia da série.

Um dos grandes diferenciais de Arquivo X na época era sua bem sucedida fórmula, que misturava o formato seriado e o formato de antologia. Ou seja, tínhamos episódios ligados diretamente com a “mitologia” principal da série, a conspiração alienígena, e episódios mais fechados, chamados “monstros da semana”, onde Mulder e Scully enfrentavam o caso do dia, normalmente alguma coisa sobrenatural/paranormal. Nesta nova leva de 6 episódios, Chris Carter, o criador da série, tentou agradar a gregos e troianos trazendo novamente esta mesma fórmula, com resultados mistos.

My Struggle I

O primeiro episódio nos coloca de volta no universo da série, trazendo uma nova versão da conspiração e um novo motivo para os agentes retornarem ao FBI e o Arquivo X ser reaberto. Embora tenha servido como uma boa reintrodução, o episódio falha em explicar algumas coisas básicas (porque, realmente, o Arquivo X foi reaberto, por exemplo), deixando muito subentendido e esperando pela boa vontade do espectador para preencher algumas lacunas – o que pode ser um problema para novos espectadores não familiarizados com essa idiossincrasia da série. Aqui, descobrimos que o DNA de Scully é parcialmente alien (o que explica seu filho ser parcialmente alien, mesmo sendo filho dela com Mulder), que Skinner ainda não foi promovido e continua como Diretor Assistente do FBI e o Canceroso está vivo e novo em folha, mesmo tendo sido explodido por um míssil no último episódio da série original.

Founder’s Mutation

O segundo episódio, que originalmente era para ser o quinto, retoma o ritmo e o tom sombrio conhecido da série clássica, embora pareça meio truncado justamente por ter sido deslocado para frente na linha de tempo. Mas é bem sucedido em seguir a ideia do DNA alien e retoma com mais impacto o conceito de William, o filho de Scully e Mulder, e seus conflitos internos por terem entregue a criança para adoção (mesmo que para o bem dela).

Mulder and Scully Meets the Were-Monster

O terceiro episódio, que já nasceu um clássico instantâneo, mas traz um desvio acentuado do tom tradicional da série. Originalmente, Arquivo X contava com temporadas de 24 a 26 episódios, e por isso podiam transitar por diversos tons diferentes. Um deles eram episódios pontuados mais humorísticos, que satirizavam a própria série e seu conceito, mesmo ainda fazendo parte da cronologia. Neste episódio, Mulder e Scully encontram um monstro que foi mordido por um homem e começa a se transformar em homem sempre que cai a noite, tendo os mesmos “instintos” que um homem moderno (trabalhar, guardar dinheiro para aposentadoria, mentir sobre sua vida sexual). É um episódio genial que já figura entre os melhores episódios de toda a série, mas que pode parecer bastante deslocado numa temporada curta e no meio de episódios bem mais sérios e sinistros.

Home Again

O quarto episódio, serve como um “final de trilogia” para elementos específicos da história particular de Scully, que começou no episódio “Home” e seguiu em “Never Again”, episódios da quarta temporada da série original. Aqui, Scully é confrontada com a morte da mãe, enquanto tem que lidar com seus sentimentos por ter dado William para adoção e, junto com Mulder, encontrar um mosntro criado “pela arte”.

Babylon

O quinto episódio é uma tentativa de Chris Carter de trabalhar temas relevantes no mundo atual, neste caso terrorismo associado ao Islã e o sentimento anti-refugiados. É um episódio meio estranho, que tenta misturar momentos cômicos com momentos muito sérios, e para muitos pode não ter funcionado. Mas tem discussões filosóficas interessantes sobre a falta de comunicação entre pessoas e conceitos vistos como díspares (ciência e misticismo, cristianismo e islamismo, religião e secularismo, ceticismo e dogmatismo, etc), além de conhecemos os Agentes Miller e Einstein, que são uma espécie de “espelhos” de Mulder e Scully quando jovens.

My Struggle II

O último episódio dessa nova leva de episódios retoma a mitologia principal da série basicamente de onde o primeiro episódio parou (ou seja, dá tranquilamente para ver os dois episódios como uma única história), e mostra os EUA sendo atacados pelos mais diversos tipos de “viroses” quando o sistema imunológico dos americanos é “desligado” pelo canceroso a partir de um sistema de edição de DNA que foi implantado através da vacina contra varíola que é administrada em todo cidadão americano quando criança.

Isto é parte do plano de dominação global pela elite conspiratória que começou em 2012 e tem seu desfecho agora. Não fica claro se há mais alguém dessa elite além do Canceroso (já vimos na série original que os membros da conspiração tinham todos sido mortos, mas neste retorno fala-se em uma “elite de homens”), nem porque uma tomada dos EUA que começou em 2012 só se consolidou agora, mas ficamos sabendo como o Canceroso retornou e que Monica Reyes (que “substituiu” Scully na nona temporada da série) o ajudou para se salvar. Descobrimos também que Scully é imune porque tem DNA parcialmente alien, que isso pode ser a chave para curar todo mundo e que o Canceroso quer salvar o Mulder lhe dando uma vacina, mas o Mulder não quer viver num mundo onde ele faz parte de uma pequena elite sobrevivente, enquanto outros bilhões morreram.

O episódio consegue amarrar bem tudo o que foi dito no primeiro episódio desse retorno, ou seja, a “nova” conspiração, mas falha em diversos outros aspectos. É muita explicação e muito acontecimento off-screen (ou seja, que não é mostrado na tela) e elementos que exigem que se tenha assistido a série original (ou pelo menos o último episódio) para entender, o que não tinha sido necessário até então. Monica Reyes está absurdamente descaracterizada, mesmo considerando o “pouco” tempo que teve na série original (uma temporada e meia, mais ou menos). Skinner só serve pra mostrar que ainda está vivo. Além disso, o episódio termina com um gancho gigantesco, com Agente Miller doente, Mulder prestes a morrer e tendo como única solução o uso de células-tronco (!) de seu filho, que Scully não faz ideia de onde está, além de uma nave triangular (não fica claro se é alien ou dos conspiradores) se posicionando sobre eles, para ou destruí-los (ou abduzi-los).

Para quem esperava que esta fosse uma temporada fechada, como um evento comemorativo de retorno, vai se decepcionar. Claramente o final foi pensado para ter uma nova temporada que, se não rolar, vai deixar muita gente (incluindo eu) puta da cara pela falta de um encerramento que o valha. É claro que considerando os números de audiência, a série deve ser renovada, provavelmente para mais uma temporada curta.

A lição que fica é que talvez o formato clássico de Arquivo X só funcione para temporadas com um número grande de episódios. Para novas temporadas curtas, talvez os produtores devam considerar simplificar a coisa – ou fazer uma temporada só de monstros da semana, ou uma temporada seriada apenas com a mitologia. O fato dos 4 episódios entre o primeiro e o último não terem nenhuma ligação com a conspiração (a única ligação, ainda que fraca, é a contínua lembrança de William) pode fazer com que muitos espectadores vejam a série como um desperdício de tempo, pois quem se interessar pela conspiração pode tranquilamente ver apenas o primeiro e o último episódio, enquanto que quem se interessa pelos monstros da semana pode pular tranquilamente estes dois. Mas talvez isso tenha sido proposital; afinal, era assim que AX funcionava “naquele tempo”; muita gente que não acompanhava a série regularmente sempre voltava casualmente porque podia acompanhar os episódios monstros da semana sem se preocupar com bagagem cronológica.

De qualquer maneira, mesmo com seus problemas, não posso considerar a nova temporada da série um desperdício de tempo. Arquivo X no seu pior dia ainda é melhor do que qualquer série que tentou seguir seus passos com resultados não tão interessantes (Supernatural, estou falando de você). Uma série tão relevante para a TV americana (e para muitos da minha geração), que literalmente mudou a forma como se faz séries nos EUA, merecia um retorno, ainda que nostálgico. Com sorte, haverá uma nova temporada e os envolvidos conseguirão aprender com os erros e nos trazer histórias cada vez melhores.


Nota objetiva: 7,7
Nota subjetiva: 9,1

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