Imagina uma série original da Netflix centrada num casal composto por dois youtubers.
Imagina que a moça do casal é a Kéfera.
E aí, você prefere ver a reprise de Cruzeiro 0 X 2 CSA ou a sextape estrelada pela octogenária Dona Irene do 602?
Como a morte é a morte, eu escolhi ver a tal série, Ninguém tá olhando. E isso tudo só porque o outro youtuber principal é um que, coincidentemente, eu acompanho de maneira sistemática, o Victor Lamoglia.
E me surpreendi radicalmente.
Em Ninguém tá olhando, somos apresentados ao mundo dos angelus – sabe os anjos da guarda Monica Buonfiglio style ou Santo-Anjo-do-Senhor-meu-zeloso-guardador,-se-a-ti-me-confiou-a-piedade-Divina:-sempre-me-governa,-rege,-guarda-e-ilumina-Amém? Então, issaí. Só que no universo de Ninguém tá olhando, os anjos da guarda, ou melhor, angelus, são meio que funcionários públicos, trabalhando numa repartição altamente burocratizada há milhares de anos, recebendo diariamente uma ordem (a OD ou Ordem do Dia) para cuidarem de um humano, evitando que ele morra ou sofra consequências da sua (nossa) incrível estupidez e fragilidade.
É nesse contexto que Deus (aka, O Chefe) cria um angelus novo, Ullisses (Victor Lamoglia), o primeiro novato do 5511° Distrito em algumas centenas de anos. Porém Ullisses (ou Ulli, como ele prefere ser chamado) é um questionador nato, e o Sistema Angelus, altamente burocratizado, não tem muita abertura pra isso. Tanto que existem quatro regras fundamentais, cuja quebra condenará seu infrator ao castigo eterno. As regras são:
#1 Cumprir a Ordem do Dia (O.D.)
#2 Não aparecer para os humanos
#3 Não proteger humanos fora da O.D.
#4 Jamais entrar na sala do Chefe.
O problema é que Ulli, tão logo sai da sala de criação, a primeira coisa que faz é (literalmente) quebrar as regras. E a punição prometida, então… é bem severa, como se pode ver no trailer (na verdade, exceto pelos parágrafos de abertura, eu poderia ter colocado logo o trailer e não precisaria escrever a maioria das coisas que escrevi até aqui. Mal aí)
Porém a série gira em torno de uma frase, altamente autoajuda, de que “Tem gente que segue regras e tem gente que muda o mundo”, que contribui fortemente para que você tenha a clara sensação de que é um romancezinho adolescente bocó, no máximo uma comédia romântica jacu.
É aí que tá. Não é.
Ok, Ninguém tá olhando tem elementos de comédia romântica adolescente, há uma clareza de público-alvo considerável na escolha de dois youtubers jovens como protagonistas. Mas tem mais coisa. É tipo cebola, manja? Tem camadas. E foi aí que a série me pegou.
Quando eu era moleque, passava na Globo uma série que eu gostava muito de ver com minha mãe, chamada O toque de um anjo (Touched by an Angel), uma série gospel sobre uma anjo novata que era guiada por uma veterana (a Della Reese, que também cantava o tema de abertura, que me arrepia até hoje). Sei que muita gente tem dito que Ninguém tá olhando é a versão brasileira de The Good Place (que eu não vi), mas pra mim ela é mais uma mistura de O toque de um anjo com pitadas de MIB e Os Aspones.
Ulli e seus supervisores, Greta (Júlia Rabello, ex-Porta dos Fundos) e Chun (Danilo de Moura, do musical Tim Maia), vão se envolver em altas confusões por conta da inconformidade de Ulli. Isso porque já de cara no primeiro episódio, além da metáfora com a placa de regras, Ulli ainda quebrará formalmente todas as regras do Sistema Angelus.
Como eu disse, Ninguém tá olhando é uma grande quebra de expectativas. Porque ele tem biquinho, asinha e peninha de comédia romântica bocó, mas quer te levar a outro lugar. Porque diversos temas vão ser discutidos, com mais ou menos profundidade, e o aspecto de comédia romântica é só mais um elemento: ele tá lá, você vê, até parece que é o centro da trama mas… tá longe disso.
Ninguém tá olhando é uma “dramédia”: uma comédia de costumes com um pé no fantástico, mas que se você prestar mesmo atenção quando estiver rindo, talvez se pergunte… Tô rindo de quê?
Diversos temas vão ser abordados, mas o principal é, pra mim, uma grande crítica à vibe contemporânea do “regras são para ser quebradas”. Ulli quebrará todas as regras (porque ele é o fodão, o imaginativo, o disruptivo, arrojado e sabe o que é melhor pra todo mundo), mas é só arrogância juvenil. Ele se sente potente (prepotente?) o suficiente para achar que, recém-criado, sabe mais sobre a vida, o universo e tudo mais, do que angelus com 8000 anos de idade, como Greta e Chun.
E, óbvio, ele está errado.
Claro, num cenário burocrático como o do Sistema Angelus, diversas daquelas normas são vazias. Fred (Augusto Madeira), chefe do 5511º Distrito Angelus, encarna profundamente essas normas vazias. O 5511° é um distrito cinco estrelas, isto é, que nunca teve um servidor punido em toda a sua existência. Mas esse mérito é vazio: os angelus recebem suas O.D.s, cumprem-nas, elaboram um relatório que ninguém lê, que são arquivados para nunca serem lidos, e isso garante as cinco estrelas.
Quando Ulli começa a jogar as regras para as picas, acaba sendo acompanhado por Greta e Chun, mas cada um a seu modo. Greta, mau humorada e ácida, logo descambará para a melancolia e individualismo. Chun, sempre controlado e receoso, vai se revoltar diante da eternidade que levou até ali.
Mas algumas regras têm uma função de existir, e Ulli e seus colegas descobrirão isso quase que da pior forma possível.
Em paralelo a isso tudo, a série dá uma estapeada em alguns temas inesperados, como a noção social de justiça, diversas formas de misticismo (o culto aos anjos e o horóscopo), as convenções de relacionamentos a dois e outras paradas.
Por exemplo, já no primeiro episódio, a série joga na nossa cara que o Chefe (ou Deus), responsável pelas O.D.s, nada mais é do que um hamster correndo numa roda – que faz o sorteio da telessena, digo, das ordens do dia (uma parada bem Douglas Adams e que, abrindo umas aspas aqui, é engraçada a seletividade da cristandade brasileira. Se a “ofensa” não for óbvia – ou vinda de um “inimigo” habitual, como o Porta dos Fundos – essa “ofensa” vai passar batido. Taí Ninguém tá olhando).
Claro, não dá pra falar muita coisa aqui sem cagar a experiência da série. A série é curtinha, oito episódios de 30 minutos mais ou menos, de modo que dar spoilerezes é meio besta.
Mas antes de terminar, umas últimas observações rápidas: longe do que imaginei, a Kéfera não incomoda. Tá, não é uma nova expoente da dramaturgia brasileira, mas rola. Em contrapartida, Leandro Ramos (do Choque de Cultura) está decepcionante. Sandro, o veterinário que ele interpreta, nada mais é do que um Julinho da Van que terminou o curso superior. É divertido quase sempre, mas a sensação é de que você tá vendo uma piada (muito) repetida (e é onde está um dos principais furos do roteiro: no começo, Sandro diz que uma pena da asa de Ulli pode “fazer a sua vida”, mas depois, quando as penas começam a rolar, não há mais nenhum interesse nelas).
Claro que, envolvida com anjos, boas ações e coisas do tipo, Ninguém tá olhando acaba tendo um aspecto edificante no fim das contas, mas sem ser piegas. Ao mesmo tempo, o último episódio termina com um gancho nem um pouco sutil – e tomava que role fôlego para que surja uma segunda temporada, pelo menos para resolver esse gancho.
Enfim, Ninguém tá olhando foi uma grata surpresa. Não, não é uma série disruptiva, que vai mudar seu mindset de séries ou coisas do tipo. Mas é uma boa diversão, tem uma mega vibe de Sessão da Tarde, com direito a lição de moral e tudo, mas atende. É aquela série legal de se ver antes de dormir, pra dar uma desligada das tretas do dia.
(ah, e antes de acabar: Não é possível que ninguém tá olhando o suficiente para pensar numa expansão em quadrinhos do universo da série. Ao mesmo tempo, apesar das limitações de efeitos e coisa e tal, Ninguém tá olhando dá um gostinho de que há espaço para explorar o fantástico na teledramaturgia brasileira. EI, NETFLIX, CÊS JÁ LERAM UMAS TAIS DE MAYARA & ANNABELLE?)
Ninguém tá olhando, série original da Netflix Brasil. Dirigida por Daniel Rezende, com Victor Lamoglia, Kéfera Buchmann, Júlia Rabello, Danilo de Moura, Augusto Madeira, Leandro Ramos, Telma Souza e Projota). 2019.
Nota: 7/10