Em Os Vingadores, os Chitauri invadiram o planeta e destruíram Nova York. Os heróis salvaram o mundo, mas uma cidade não se reconstrói de uma tragédia da noite para o dia. As consequências da Batalha de Nova York são o ponto de partida de Demolidor, a primeira da leva de séries que fazem parte do acordo entre a Marvel e o Netflix. Dos destroços da cidade surge a oportunidade para a ascensão de Wilson Fisk ao poder no submundo, assim como a necessidade de alguém se levantar para defender a vizinhança de gente poderosa que tem todas as autoridades no bolso proporcionou o surgimento do Demolidor.
A série:
Assim como em todas as boas histórias, Demolidor tem uma premissa simples, mas complicada pelos diversos fatores e agendas de diferentes jogadores. Matt Murdock é um filho da Cozinha do Inferno, um advogado idealista recém formado que decide se tornar um vigilante durante a noite para agir nas entrelinhas onde a lei é ineficiente, evitando perder sua alma no processo. Wilson Fisk é outro filho da Cozinha,e também um filho das circunstâncias, que quer (ou pelo menos acredita que quer) tornar seu bairro num lugar melhor; mas, para concretizar seus objetivos, ele precisa de dinheiro, influência e agir nas entrelinhas onde a lei pode ser usada a seu favor. Ao contrário de Matt, Fisk não tem medo de fazer o que for preciso para atingir seus objetivos.
Orbitando ao redor dos dois personagens (e sofrendo as consequências de suas ações) está a própria Cozinha do Inferno e seus personagens. Entre eles Foggy Nelson, melhor amigo de Matt; Karen Page, presa injustamente e que se torna secretária não remunerada dos dois; Claire Temple, enfermeira que se envolve involuntariamente com os atos do Demolidor; Ben Ulrich, jornalista da velha guarda da Cozinha do Inferno, que já foi responsável por desvendar grandes esquemas no passado e agora se sente defasado num mundo onde blogs de internet inventam histórias que valem mais do que a verdade; James Wesley, braço direito de Wilson Fisk; Leland Owsley, que cuida das finanças de Fisk; e Vanessa Marianna, interesse romântico que tem um papel fundamental no arco do vilão.
Como ambos possuem visões bem diferentes sobre o que é melhor para a Cozinha do Inferno o conflito é inevitável, e o crescente antagonismo de duas personalidades inflexíveis não acontecerá sem consequências, tanto para os que estão ao lado deles quanto para os que se colocarão contra. O resultado desse conflito determinará o destino da Cozinha do Inferno.
Resenha:
A Marvel falou sério quando disse que as séries do Netflix eram a oportunidade de explorar os personagens mais urbanos e fazer histórias mais maduras. E não digo isso pela violência gráfica (que é bastante acentuada, muito longe de qualquer filme ou série do estúdio), e sim dos temas que a história trata. Partindo da virtude de Matt Murdock, moldada pelo seus valores católicos, Demolidor constrói uma história que nos faz questionar sobre diversos conceitos da nossa vida, como noções de bem e mal, se fins justificam os meios, se é possível uma pessoa comum fazer a diferença, ou se vale a pena perder a alma e sacrificar os próprios valores para eliminar o mal de uma vez por todas.
Com estes temas, a série mostra um Matt Murdock idealista a ponto de ser ingênuo, corajoso a ponto de ser estúpido, e obtuso a ponto de não entender as consequências de suas atitudes para as pessoas próximas a ele. Em outras palavras, Matt tem um ideal, mas não um plano, e vai improvisando no caminho.
Já Fisk é o oposto: Fisk tem um plano, e atua dentro desse plano como um verdadeiro empreendedor que vê a Cozinha do Inferno como seu principal empreendimento. Por isso, se envolve com grupos criminosos japoneses, chineses e russos para garantir o investimento necessário para seus planos. Sua objetividade só é abalada quando conhece Vanessa, que tem uma importância na trama muito maior do que eu esperava.
Do ponto de vista realista, ou seja, do que a série traz e apreende do mundo real, Demolidor é especialmente recomendado para os brasileiros de hoje, que vivem numa aura de conservadorismo extremista que faz cidadãos ~de bem~ querer a morte de pessoas. A história trabalha de forma eficiente o conflito interno de Matt com relação ao que ele acha que precisa fazer para resolver de vez os problemas da Cozinha do Inferno, e seus valores morais e religiosos. Enquanto para os brasileiros hoje não parece haver contradição entre assassinato e ética, este conflito é, para Demolidor, tão difícil quanto limpar a Cozinha do Inferno. O resultado desse conflito, é claro, definirá a transformação de Matt de um vigilante mascarado em um verdadeiro símbolo para sua vizinhança.
Falando em mundo real, a série é realista também em outro ponto importante: em fazer o espectador se importar com a Cozinha do Inferno e seus habitantes. Apesar de algumas caricaturas típicas (como a vizinha imigrante exageradamente estereotipada, a quantidade de docas onde as transações criminosas acontecem, etc), o roteiro consegue criar o clima de “bairro”, onde todos meio que se conhecem e as consequências da guerra entre Demolidor e Fisk são sentidas em diversos níveis.
Para os fãs que ainda tinham na boca o gosto amargo do filme protagonizado por Ben Affleck, a série é um feliz sopro de qualidade e fidelidade ao material fonte. Fortemente inspirada no material escrito por Frank Miller, a série é forte, intensa, e leva a sério a trajetória de seus personagens. Em geral, os coadjuvantes não são desperdiçados (apesar de vez ou outra gente como Karen Page parecer perdida na trama) e não estão ali apenas pelo massaveio ou para fazer referência às hqs; eles possuem papéis relevantes e que servem para levar a história adiante. O elenco como um todo é, definitivamente, o ponto mais forte da série. Com atores do Calibre de Vincent D’onofrio, Bob Gunton e Aylet Zurer, que não decepcionam, o destaque acaba sendo para atores menos conhecidos que não se intimidam com a qualidade e experiência dos seus colegas de elenco e mantém atuações fortes, sem se perder ou sumir nas cenas.
Por motivos que eu ainda não entendo, muitos fãs ficaram preocupados com o personagem usar um uniforme improvisado todo preto, achando que ele talvez não fosse usar o seu uniforme clássico. A parte boa é: óbvio que ele eventualmente chega nesse uniforme. Aliás, pode-se dizer que o uniforme final da temporada é a representação do fato de Matt aceitar seu papel dúbio na cozinha do inferno (o “diabo” da cozinha do inferno que age como anjo da guarda do bairro). A parte ruim, pelo menos pra mim, é que talvez eu tenha me acostumado tanto com o uniforme que ele usa durante praticamente toda a temporada, que quando surgiu o uniforme oficial, ele pareceu meio deslocado pra mim. Mas nada que tenha me impedido de aproveitar a história.
Como seria de se esperar de uma história do Demolidor, há diversas cenas de luta, dos mais variados tipos. Do treinamento com Stick a uma luta no corredor com diversos criminosos (muito provavelmente uma homenagem a Oldboy), passando por lutas corpo a corpo com bandidos ou ninjas, as cenas de luta são bastante cruas, intensas, e algumas merecem ser assistidas mais de uma vez. Há dois enfrentamentos corpo a corpo entre Fisk e o Demolidor e, apesar da primeira ser bem mais dramática e interessante que a última, ambas funcionam muito bem.
Quem é particularmente fã do Demolidor pode esperar menções à Elektra, ao passado nebuloso de Karen Page, ao Tentáculo e a outros elementos da história do personagem. Inclusive, a série deixa o caminho preparado para alguns dos arcos clássicos. E quem é fã do universo Marvel como um todo, pode esperar menções à batalha de Nova York, ao Hulk, ao Thor, ao Homem de Ferro e elementos que ligam o Demolidor a outro personagem que terá sua série pelo Netflix, o Punho de Ferro.
Me parece bem claro o rumo que as série do Netflix vão tomar em direção à minissérie dos Defensores, e a resposta provavelmente estará na série do Punho de Ferro (talvez por isso ele será a última série a estrear antes da mini reunindo todos). Aliás, a série está de parabéns ao saber dosar elementos mais fantásticos ao clima realista da série, sem citar estes elementos diretamente nem fazê-los ficarem deslocados do clima do programa. Mesmo quando Demolidor luta com um ninja – bastante exagerado para a atmosfera da série até ali, o programa consegue evitar ficar esquisita demais.
Demolidor tem seus defeitos? Claro que tem. Alguns culturalmente clássicos, outros típicos de produções da Marvel, e por aí vai. Mas isso fica para o podcast sobre o tema.
Com atuações acima da média dos programas de TV da Marvel, uma história mais séria, violenta e pé no chão (mas sem esquecer das idiossincrasias das histórias de super-herói), Demolidor cumpre seu papel de expandir um mais o universo Marvel, mostrando um canto deste universo que certamente seria ignorado, ou pelo menos não explorado o suficiente, não fosse por samaritanos como Matt Murdock, que decidiu tomar nas mãos a responsabilidade de transformar sua cidade num lugar melhor.
Nota: 8,9