Antes de mais nada, de repente cê leu mas não prestou atenção: tem spoiler. No caso de Bacurau, o spoiler vai além da trama e atinge a experiência em si.
Portanto, eu recomendo fortemente, de coração, que você
NÃO LEIA ESTE TEXTO ANTES DE VER O FILME.
Sério mesmo. Vai lá, assista, goste ou desgoste do filme, mas faça isso depois de vê-lo.
Sei que falar contra o spoiler é meio estranho no MdM, mas vai por mim. Agora é sério.
(se bem que se você é daqueles viúvas do MdM blábláblá vai ver que o texto é meu e evitar o filme de antemão. Não tem saída…)
Então lá vai: se esse filme te instigou um pouquinho que seja, você já sabe a sinopse –
” Pouco após a morte de dona Carmelita, aos 94 anos, os moradores de um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro, chamado Bacurau, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa. Aos poucos, percebem algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade pela primeira vez. Quando carros se tornam vítimas de tiros e cadáveres começam a aparecer, Teresa (Bárbara Colen), Domingas (Sônia Braga), Acácio (Thomas Aquino), Plínio (Wilson Rabelo), Lunga (Silvero Pereira) e outros habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa. ”
Isso é o resumo, ao mesmo tempo que poderia ser toda a trama do filme.
Mas isso sim é tudo: Bacurau é um povoado isolado no interior de Pernambuco, num futuro próximo. É um lugar pobre também, não a ponto da miséria total, mas quase lá. Tem tecnologia, mas falta água (que é represada pelo poder político), medicamentos e alimentos em alguma medida. A trama começa com a morte de Carmelita, uma senhora de 94 anos, a mais velha da cidade, cujos filhos e netos se espalharam pelo mundo. Como diz seu filho, Seu Plínio, Dona Carmelita deixou filhos e netos médicos, arquitetos, jornalistas, professores, puta e michê, só não deixou ladrão. Apesar das sinopses sempre atrelarem a morte dela à mudança do cenário, mas eu tenho dificuldade em fazer essa relação.
O lance é que a morte dela une o lugarejo e traz pessoas de volta (entre elas sua neta Teresa) para o seu velório. Concomitantemente, as autoridades do Brasil do Sul estão à caça de Lunga, uma espécie de Lampião pós-moderno ligado à comunidade, e Acácio tenta deixar para trás sua vida como Pacote, um criminoso igualmente procurado.
Em Bacurau, o povoado, tem de tudo: criminoso, médica alcoólatra, tem puta, tem gays e lésbicas, tem raizeiro, tem professores dedicados, velhos, crianças, etc.
De repente um drone com cara de disco voador de sci-fi antigo aparece na cidade. Um fazendeiro próximo e toda a sua família são barbaramente assassinados e a morte começa a se aproximar da cidade através de dois misteriosos trilheiros… que na verdade são batedores de um grupo sádico de gringos que participam de um jogo de caça aos “sub-humanos” de Bacurau.
Mas o povo do lugar é forte. Seja velho ou novo, homem ou mulher, gay ou hétero. Há o povo. Há Lunga.
Sim, eu fiz questão de contar praticamente toda a trama. Acho importante deixar claro que a trama não representa absolutamente nada do que realmente importa em Bacurau. Inclusive, é um fiapo de história, que poderia compôr qualquer filme B meio gore. Tem elementos de faroeste, de drama, cenas de humor, mas nada com força o suficiente para definir o filme.
Pelo contrário: teve quem chamasse de “guacamole de gêneros“. É fácil reconhecer elementos de filmes e histórias já conhecidas, formando quase uma colagem. Eu vi muito de “O Estranho Sem Nome” do Eastwood, “El Topo” do Jodorowsky, “Canudos” (tanto o filme quanto a história em si). Há algumas referências diretas a Lampião e seus cangaceiros (as fotos no museu, as cabeças cortadas; Lunga, que traz “mais mal do que bem” mas que mesmo assim é aplaudido ao chegar, etc).
Isso porque Bacurau é um filme-metáfora. Pra mim, nada sutil, inclusive.
Não é a toa que o fictício povoado de Bacurau não seja nem uma cidade. Porque Bacurau poderia se chamar Morro das Pedras, Cantagalo, Pedreira Prado Lopes, Marmiteiros, Sovaco da Cobra, Rocinha, Maré, Morro do Alemão:
Bacurau é uma favela.
Até esse insight me ocorrer, ficou martelando na minha cabeça de porque aquele lugarejo era habitado pela “escória moral” mais óbvia: tem puta e viado, uma visitante contrabandista; um bandido admirado; uma médica meio relapsa, alcoólatra e lésbica; tem pobreza; criança buchuda; cachorro vira-lata pela rua; construções degradadas. E nada disso é assunto do filme. Tudo é natural – um marido é expulso de casa pela esposa e vai dormir na maca do hospital, e isso é banal. Uma travesti vigia a entrada da vila, e isso é normal. O prefeito só vai até lá porque a eleição tá próxima, leva alimento vencido, remédio viciante (pra se tomar pelo cu. É a forma de consumo favorita da população, que fica “lesa” ao tomá-lo) e livros velhos, despejados como lixo, e isso também é comum.
Bacurau é a Favela.
Daquelas favelas de filme mesmo, onde tudo aquilo que nós, cidadãos ditos respeitáveis, asseados, não queremos ter diante dos nossos olhos, e escondemos lá.
Bacurau, assim como a Favela (sim, com “F” maiúsculo), é o esgoto da nossa “civilidade”. A Favela é, desde sempre, o lugar da marginalidade. No sentido original de “marginalidade”, daquilo que “está à margem”: a Favela é, por excelência, o lugar do marginal: geograficamente está (em geral) à margem (não atoa tomamos “periferia” como sinônimo de favela, mesmo quando a favela em questão está no olho do centro urbano); à margem dos direitos, à margem da civilidade (e normalidade) burguesa. Os habitantes de Bacurau são todos marginais e, em Português Brasileiro, coletivo de marginais é favela.
Porém, assim como a Favela, quem nasce em Bacurau é gente. O assassino quer se regenerar. Os professores são dedicados. As crianças são amadas. O bandido perigoso era um bom escritor quando menino. E as pessoas cuidam umas das outras.
Se Bacurau é a Favela, é preciso então saber quem são os invasores.
Como disse antes, o filme não é nada sutil – aquele que parece ser o chefe dos invasores, Michael, é alemão.
Alemão.
“Alemão”, saca?
Mas “alemão” na gíria é qualquer invasor, né? Qualquer inimigo, então dizer que “os invasores são os alemão” é radicalmente redundante.
Pois bem, se há alguma dúvida, a discussão entre Terry e Joshua logo depois deste atirar contra uma criança, deixa tudo claro: “os alemão” são a polícia.
A ligação entre eles e o prefeito Tony Júnior (isto é, o poder público) torna as coisas narrativamente (no sentido textual) evidentes, mas nada pra mim é tão significativo quando o aspecto visual de quando os alemão invadem a vila e veem as roupas dos mortos estendidas no varal. Porque é uma referência muito clara (pra mim cês adoravam referências, ou tô errado?):
Aqui é preciso fazer um desdobramento sociológico: se os alemão são a polícia, se os alemão estão ligados ao prefeito/poder público (como no mundo real), os alemão são a polícia, mas são também o Estado. O Estado cujas melhores tecnologias estão investidas na violência (os invasores usam “armas vintage” por regra do jogo, mas têm seus drones, seus pontos eletrônicos, seus “colaboradores locais” contratados), enquanto os alimentos fornecidos são irregulares e podres, os remédios são incapacitantes e os livros são velhos.
Isso não é novidade, não sou eu, professor da Academia de Polícia de Minas Gerais que estou falando, isso é ponto pacífico: se a polícia é o único braço do Estado que chega até o morro, então quer dizer que lá não chega nada do Estado, só a violência (nessa entrevista aqui, o ex-secretário de segurança pública do Rio, José Mariano Beltrame, diz mais ou menos isso ao comentar o fracasso das UPPs).
Pessoalmente, acho que o filme tem duas grandes cenas, memoráveis e sensíveis, que cortam completamente a metáfora e me transportaram imediatamente a cenas que eu já vi na vida real. Ambas se referem à morte de Flávio – quando Pacote discute com os cadáveres dentro do jipe (“Eu falei pra não ir, porra!”) e depois, já com Lunga de volta ao povoado, quando a mãe descobre que Flávio morreu (e dali para frente essa personagem vai estar sempre chorosa, esgotada. Tendo apenas dois diálogos no filme inteiro, é pra mim das personagens mais impactantes da história toda.
Pra dizer da potência dessas cenas, é preciso fazer um parêntese no tom “tecnicista” do texto e pessoalizar a parada: durante uns bons anos eu trabalhei no plantão da divisão de homicídios de BH. Meu serviço era atender com a equipe os locais onde ocorrera um assassinato (ou morte suspeita) imediatamente.
A imensa maioria dos locais de homicídio eram em favelas ou áreas de periferia. A imensa maioria de vítimas era composta de homens – mortos em disputa de ponto de tráfico, em cobrança de dívida, em guerra de gangue. Já fui em local de homicídio que a vítima era o bandidão, o sinistro da área, o cara mau mesmo. E sabe o que sempre tinha em quase todos os locais de homicídio?
Uma mãe chorando em cima do corpo ou perto dele. Os braços, as roupas, os cabelos, tudo sangue. E aquela mulher se acabando num choro forte de dor.
Essa situação me marcou tanto que, ali por 2008, escrevi uma pequena crônica sobre o assunto (uma hora eu acho e se ainda tiver algum valor, linko aqui).
Quando o filme mostra de maneira tão crua o luto radical da mãe, era de novo 2008, eu estava de novo num local de crime qualquer, criando coragem e esperando a hora menos inadequada para abordar aquela mulher, para colher o que ela tem. Rever a cena foi forte.
Como eu disse, a trama do filme em si é coisa pouca. Fosse só isso, linearzinha, sem grandes (nem pequenas) alegorias, Bacurau seria um filme esquecível. Fosse rodado numa favela, os policiais matando os populares e estes se revidando, talvez nós nem víssemos. Talvez não nos compadecêssemos de nada nem de ninguém.
O grande mérito de Bacurau é construir uma metáfora tão redonda, que quando você percebe (se é que todos percebem), já é tarde demais, já estamos vibrando pelo alemão que cai com o crânio espatifado por uma bala. Nós nos compadecemos pelos moradores de uma forma que não nos compadeceríamos por meia dúzia de “favelados”, apesar deles serem, em tudo, “favelados” (quem lembra do fogueteiro de Tropa de Elite?).
Bacurau é um truque de mágica de palco: nos faz olhar para outro lado e, quando a gente volta a visão, já é tarde demais. A barreira da desumanização que às vezes usamos para nos afastar do favelado, do marginalizado, já caiu.
São putas, viados, travestis, bandidos. São também médicos, professores, raizeiros, cantadores. Mas quando a “espada do Estado” desce, ela não diferencia bons e maus, e é isso que Bacurau expõe: talvez não nos identificaríamos com Pacote ou Lunga. Mas que culpa Flávio tem por ser amigo de Pacote ou primo de um dos capangas de Lunga? Qual o crime da criança que mora na mesma comunidade que Pacote? O que fizeram os entregadores de caixão?
A “metáfora redonda” de Bacurau é espetacular porque obriga que nos lembremos que os marginalizados, o “lixo da civilização” são pessoas também.
Elas nasceram em Bacurau, e quem nasce em Bacurau é… gente.
Enfim, Bacurau, o filme, é um troço difícil de falar sobre. Porque é uma questão mesmo de experiência: assistir a primeira vez, sem saber quase nada sobre o filme, permite uma sensação muito rica.
Eu gostei? Gostei.
Mas tem um gosto amargo. Tem um incômodo triste, como se fosse tudo claro demais, e faltasse ainda um passo, uma reflexão, um algo que eu não sei o que é. Inclusive, em determinado momento a violência fica “tarantiniana” e gasta. Já não assusta nem comove.
Talvez a ideia fosse essa, né?
BÔNUS LAP
Algumas coisas do filme ainda estão ecoando na minha cabeça. Porque eu não as consigo amarrar na metáfora, e aí elas ficam sem sentido na minha cabeça.
A cena de Domingas e Michael, por exemplo, a oferta do banquete. O Museu Histórico de Bacurau (e a cela no subsolo do povoado, que demonstram que o lugarejo é alvo constante de ataques – e segue sobrevivendo). Mas todas as vezes a cidade foi apagada do mapa? O “poderoso psicotrópico” que toda a população usa antes da batalha. A igreja do povoado (“que nunca esteve fechada”). Ou o que se quer discutir com os invasores só usando “armas vintage”. A aparição de Dona Carmelita… Se alguém tiver ideias sobre essas coisas e quiser trocar, vem de zap, digo, de tuíter!