Entre as editoras brasileira de quadrinhos, uma pouco falada (e até menosprezada) mas que tem um catálogo muito interessante é a Zarabatana. Capitaneada pela simpatia em pessoa do Claudio Martini, a Zarabatana, apesar da pouca mídia que recebe, é por exemplo a casa editorial no país de gente como Guy Delisle e, se isso não bastasse, também está sempre lançando quadrinhos brasileiros sensacionais (Sabor Brasilis, Aos cuidados de Rafaela, Bando de Dois) e internacionais que dificilmente veríamos por aqui, como a coleção Fierro, O Jogo das Andorinhas e este O prolongado sonho do Sr. T., do espanhol MAX.
Lançado em 2006, O prolongado sonho… sempre me instigou. Achava a capa bonita, o tal Sr. T. pelado, segurando o próprio coração na mão, um buraco no lado esquerdo do peito, encarando um rosto enorme e perverso atrás de si. Quando tive oportunidade de folhear, a bonita arte a pincel me chamava mais ainda.
Mas nunca li. É tristemente engraçado, mas em 2006, pagar R$29,00 num gibi desconhecido de 84 páginas me parecia caro… Veja você, o mundo mudou queridinha!
Mas quando o gibi pintou de bobeira lá na Casa da Revista, aí não deu pra deixar passar.
O prolongado sonho do Sr. T. apresenta exatamente o que o título promete:
“Em 17 de março de 1993, Cristóvão T., casado, comerciante, deitou-se em sua cama à meia-noite, como de costume. Quando despertou – às sete da manhã, como era seu hábito – estava na UTI do Hospital Son Dureta, em Palma de Mallorca. Haviam se passado 40 dias. A primeira coisa que Cristóvão T. fez, depois de abrir os olhos, foi pedir papel e lápis para as atônitas enfermeiras. Durante as semanas seguintes, o Sr. T. preencheu três cadernos com uma narração detalhada de tudo o que havia sonhado. As páginas que vocês vão ler são uma transcrição gráfica de seu relato.”
Essa descrição abre o gibi (que foi originalmente publicado em partes da mítica revista espanhola El Víbora) como nota introdutória. O que se descortina então, nas páginas seguintes, é uma longa sequência de eventos bizarros, ora com mais, ora com menos encadeamento lógico. Nu, Cristóvão T. se sente caindo em profundezas escuras, até se ver na recepção de um hotel, frente a frente com um chinês desconhecido e um livro de sua própria autoria, que ele afirma nunca ter escrito.
Qualquer estudante de psicologia, já nos períodos iniciais do curso, tem gravada a ferro em seu cérebro a famosa máxima freudiana: “os sonhos são a realização de desejos inconscientes”. A metapsicologia freudiana então vai demonstrar como se operam mecanismos psíquicos no ato de sonhar para que coisas desejadas (e impedidas) sejam expressadas para trazer alguma satisfação.
Não sei se a história do pobre Cristóvão T. é real ou não – o álbum não nos dá nenhuma pista. Independente disso, MAX conta com perfeição o que seria um bizarro, mas muito verossímil, sonho de autoconhecimento. Desde a cena de abertura, até a construção paulatina de algum sentido em tudo o que se passa. Cristóvão T. é imediatamente cercado por estranhíssimos personagens, e que lhe são completamente desconhecidos: o simpático chinês Su, a sexy e misteriosa Sara e o perigoso Scallywax.
Cada um destes personagens terá ocasião de contar um sonho seu, dentro do prolongado sonho de Cristóvão T.. MAX preenche a trama com simbolismos dos mais diversos – a navegação de Su no céu noturno, a ejaculação completa de Cristóvão, a prisão eterna e perversa de Scallywax.
Escrevendo este texto, foi que me dei conta que O prolongado sonho do Sr. T. é um gibi praticamente “inresenhável“: não é possível comentar o quadrinho sem desnudar (rá!) toda a sua trama e, entregar de bandeja já de partida, o sentido que só se construirá nas últimas páginas. Tudo o que é possível ser dito é isso: Cristóvão T. dorme por 40 dias, neste período tem um longo sonho em que aparecem sujeitos totalmente desconhecidos e que parecem saber muito mais sobre Cristóvão do que ele sabe sobre si mesmo – sobre estes sujeitos então, nem se comenta, Cristóvão está mais perdido que azeitona em boca de banguela. O sonho é praticamente um relato didático para se discutir “A interpretação dos Sonhos”, texto de 1899 de Sigmund Freud.
Nesse sentido, MAX constrói uma trama excelente, coesa e bem escrita sobre algo que, apesar de um potencial absurdo, teria grandes chances de degringolar para a pirotecnia vazia e o simbolismo barato. MAX, ainda que no desfecho acabe sendo um tanto didático demais (afinal, ele não quer deixar o leitor a ver navios – rá! de novo), o sentido está muito inteligentemente espalhado em pequenos detalhes ao longo da trama. A consequência disso é bastante óbvia: O prolongado sonho do Sr. T. exige uma segunda leitura. Um exemplo sensacional é o sonho dentro do sonho que Cristóvão T. envolvendo Sara (ou Sandra? Samanta?): após terminar a leitura do álbum todo, e entender o que o inconsciente de Cristóvão queria realizar, o que cada uma daquelas peças representa no total do quebra-cabeças. É incrível.
Acho que essa é a grande beleza deste álbum: uma história que poderia facilmente se tornar apenas nonsense, uma parte gráfica que não abusa de recursos óbvios, pelo contrário, os evita com facilidade e que, no fim das contas, é extremamente verdadeira. O prolongado sonho do Sr. T. pode até ter começo-meio-e-fim, mas é um sonho, tem suas confusões e soluções e, como tal, só será verdadeiramente entendido quando revisado à luz da consciência.
E pensar que custei tantos anos para enfim ler esse gibi… Mas é como diz o velho Bituca: “sonhos não envelhecem“…
O prolongado sonho do Sr. T., de MAX (Francesc Capdevila). Zarabatana Books, 84 páginas, 2006, R$29,00 (paguei quinzão).
Nota: 10/10.