Super-heróis sempre foram, em grande medida, histórias sobre expectativas. Mais especificamente, sobre a inversão de expectativas. Sobre descobrir que um tímido repórter é um ser superpoderoso, que um rico milionário passa suas noites combatendo o crime, que uma simples enfermeira do Exército era uma Amazona poderosa. Ou que um nerd tímido e sem graça possa ser um super-herói. Histórias de super-herói sempre foram sobre encontrar o extraordinário naquilo que é mais ordinário.
Super-heróis também eram sobre excluídos. Na Era de Ouro, Superman combatia criminosos, mas na prática ele combatia injustiças sociais. Batman usava sua fortuna para o bem comum. Mulher-Maravilha andava entre os homens, como um deles, mesmo sendo praticamente um deus. Mas, ainda assim, eram pessoas “privilegiadas” ajudando o mais fraco. A “revolução” não vinha do oprimido.
A Marvel mudou essa dinâmica com seus super-heróis. Agora, o herói era o próprio excluído, alguém como eu, como você, como qualquer um. Continuava o tema da inversão de expectativas, mas agora não tínhamos mais “privilegiados” vivendo entre os desprivilegiados; era o próprio desprivilegiado que tomava a “revolução” nas mãos* para defender outros desprivilegiados.
Virtualmente todos os heróis da Marvel, os que importam pelo menos, são excluídos e frequente motivo de escárnio por não serem “bons o bastante” para aquilo que é considerado “normal”; Steve Rogers era o jovem franzino que não era bom o bastante para o exército; Tony Stark era rico, mas tinha um problema no coração; Bruce Banner se tornou um pária, vítima de sua própria criação. Até Thor era um excluído entre os seus, tendo sido banido para a Terra por não ser “bom o bastante” para os Asgardianos.
Ms Marvel, que faz parte de uma retomada da Marvel nesta espécie de “vanguarda” mainstream, traz o melhor desses mundos e faz jus à tradição da editora de fazer surgir heróis de suas próprias dificuldades. A heroina aparece, no entanto, em uma época bem diferente daquela em que a maioria dos heróis clássicos da Marvel foram criados: uma época onde o nerd é respeitado como público consumidor, mas que há outros aspectos humanos rejeitados por aquilo que se considera a “norma”. A diferença é que, enquanto a América ignora os “nerds tímidos” que todo ano disparam contra pessoas em shoppings, cinemas e escolas, dá bastante atenção para uma (suposta) ameaça vinda de uma religião oriental. Ou seja, estes novos “excluídos” vivem num mundo mais turbulento (ou pelo menos explicitamente mais turbulento) que os nerds de antigamente. E se verem representados em outra mídia pode fazer muito bem, não só para os excluídos, mas para aqueles que os excluem também.
Na história, Kamala Khan é uma jovem nerd muçulmana de Nova Jérsei que é fã dos Vingadores e, em particular, da Capitã Marvel. Após um evento que lh confere superpoderes, Kamala vai ter escolher se os usa para o bem, tendo que se virar entre ser super-heróina, aluna, filha e uma adolescente normal.
Todas as características clássicas de um herói Marvel estão lá: O interesse romântico, as complicações de aprender a usar os poderes, as dificuldades de conciliar a vida super-heroica e a vida comum, a primeira missão atrapalhada, entre outros. Temos, inclusive, o “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades” da heroína, que também vem da figura paterna, mas desta vez não vêm da sabedoria popular, e sim de uma aia (“verso”, numa interpretação livre) do corão: “Quem mata uma vida, é como se matasse toda humanidade; quem salva uma vida, é como se salvasse toda humanidade.”
Recentemente, Chris Rock fez um monólogo monumental na cerimônia dos Oscar. O que o tornou monumental foi o fato de Chris Rock ser, além de um comediante respeitado, negro. Só ele seria capaz de dizer o que disse (de criticar brancos E negros, de brincar com certos exageros do ativismo social reconhecendo sua importância, não diminuindo as pautas sociais) e “sair ileso”.
O fato de Ms Marvel ser escrito por uma mulher muçulmana tem efeito análogo: G. Willow Wilson consegue fazer uma história que brinca com as características do cultura islâmica, reconhecendo sua relevância e sem depreciar a religião e sua cultura.
Os desenhos de Adrian Alphona são meio estilizados, mas dinâmicos e funcionam muito bem para uma história que caminha o tempo inteiro na linha entre o sério e o caricato, mas as cores me incomodam um pouco. Mas, até aí, em geral quase todas as cores das HQs mainstream de hoje me incomodam (com algumas exceções, é claro). Mas isso é reclamação para um outro post.
Se você já se perguntou alguma vez como era ser um nerd na época em que Peter Parker foi criado, basta dar uma conferida na Hq da Ms Marvel e você vai ter uma boa ideia. Kamala Khan é o Peter Parker para os novos tempos, o que não é nem um pouco demérito para o cabeça de teia; ao contrário, Ms Marvel apenas adiciona, com sucesso, mais um personagem clássico da Marvel que inverte expectativas e encontra o extraordinário naquilo que é mais ordinário.
Nota: 9,02
*Eu diria que essa foi uma virada Marxista do gênero super-heroico, mas sei que a maioria dos leitores rasgaria o cu de raiva enquanto grita “PETRALHA! VAI PRA CUBA!” se lesse isso. Então, não escreverei, viu, podem ficar tranquilos. O mundinho de vocês continua a salvo dos comunistas.