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A gente lemos: Le Chevalier e a Exposição Universal

Contar histórias em qualquer mídia de entretenimento que se foque no ato de leitura é, no Brasil, uma tarefa ingrata. Não bastasse sermos uma população que quase não lê, ainda seguimos carregando aquele mito cultural de que aquilo que é nacional não tem qualidade. Some isso ao fato de que há também uma cultura de “amiguismo” por aqui onde se fala bem de uma obra apenas pela amizade, que se apegam a um nacionalismo bizarro e contraproducente (onde se divulga muita merda só porque é ~nacional~), ou que não entendem o que significa escrever uma resenha (spoiler: Não é apenas dizer que é foda ou que é uma merda porque é a sua opinião), e temos um cenário literário bastante complexo e complicado, tanto para quem quer produzir histórias quanto para quem quer consumi-las.

Em meio a todas essas dificuldades, um gênero que tem se popularizado cada vez mais no Brasil é o da Literatura Fantástica. O fator parece-que-estou-lendo-uma-campanha-de-RPG, que permeava muitas dessas histórias no passado parece finalmente superada, e os autores cada vez mais têm se dedicado a se aprofundar nas teorias literárias por trás do que escrevem. E talvez por isso seja um dos gêneros que tem descoberto cada vez mais bons autores brasileiros hoje em dia. Pena que nem todo mundo se dê conta disso, pois seguem recorrendo aos estrangeiros já consolidados.

É por isso que achei um bom desafio resenhar Le Chevalier e a Exposição Universal, uma obra nacional de steampunk recém publicada pela Avec Editora. Se é difícil para o autor e para o leitor, imagina para o resenhista, que, ao mesmo tempo em que quer divulgar o produto nacional, quer também ser justo com o material e com os leitores. Encontrar esse equilíbrio, não ser excessivamente crítico, nem excessivamente condescendente, também é uma tarefa difícil na literatura nacional.

Mas, antes, a sinopse:

sinopse-lechevalier

Produzida para ser um mundo multimídia (que será adaptado também para quadrinhos, jogos, etc – os quadrinhos devem sair em breve) Le Chevalier se apóia principalmente na construção do mundo da história, suas regras e particularidades. E nisso está o ponto mais forte do livro, pois o autor consegue ambientar muito bem o leitor, sem aliená-lo e também sem cair no demasiado didático. Nas sutilezas da trama somos apresentados aos aspectos sociais e políticos daquela realidade, além de ter um vislumbre das diferenças culturais para além do ambiente da história (o autor não se esquece que existe um mundo diversificado lá fora, mas não deixa isso pesar ou prejudicar o embalo da história). Com uma narrativa ágil e dinâmica, o leitor entra facilmente no mundo de Le Chevalier e logo se vê interessado em saber como a trama vai continuar.

Há diversos dispositivos narrativos e de edição que ajudam a dar verossimilhança para o mundo criado, como, por exemplo, a mistura entre eventos históricos e fictícios, e pequenas mudanças na linha temporal (como um Abraham Lincoln ainda vivo, mas com seqüelas por conta do atentado a sua vida), que deslizam com naturalidade na trama, sem parecerem forçadas, deixando claro algumas diferenças deste mundo paralelo em relação ao mundo real.

Outro recurso esperto do livro é usar notas de rodapé para incrementar informações rápidas sobre termos e certos aspectos importantes para a trama, mas que poderiam desviar o foco da história. Nem sempre esse recurso é bem sucedido (o uso excessivo de termos em francês é elegante em algumas ocasiões, mas totalmente dispensável e desnecessário em outras), mas quando funciona, incrementa bem a experiência de leitura.

Mas o que “Le Chevalier…” ganha na narrativa, na descrição e na ambientação, perde em outros aspectos, especialmente na construção dos personagens. Apesar de interessantes para a proposta do livro (uma aventura mais ao estilo infantojuvenil), eles não fogem muito de estereótipos já desgastados, o que pode incomodar um pouco o leitor mais exigente (mas não deve preocupar o leitor acostumado a, por exemplo, assistir os filmes da Marvel Studios). Le Chevalier e Persa parecem, em alguns momentos, uma paródia de Sherlock Holmes e Watson, e em outras uma versão steampunk de Dylan Dog e Groucho Marx. Os personagens de apoio são, de fato, apenas apoio, servindo para levar a trama de um ponto a outro sem nada realmente curioso que o valha, seguindo-se a já velha fórmula dos personagens-que-você-não-pode-saber-se-vão-ajudar-ou-atrapalhar-mas-você-sabe-que-eles-vão-ajudar. Num mundo que se foca na espionagem, seria de se esperar uma traição ou outra para aumentar o conflito pessoal.

Apesar disso, os diálogos são interessantes; começam um pouco duros, com função apenas de levar as cenas do ponto A para o ponto B, mas com o tempo melhoram e levam a algumas sequências até inspiradas. Infelizmente, como os personagens não fogem muito de estereótipos já conhecidos em aventuras do tipo, muitas vezes os diálogos acabam se tornando um pouco previsíveis.

Num geral, “Le Chevalier…” peca por não tentar nada novo dentro do gênero, mas ganha muito por ser bem escrito. É muito melhor saber fazer um feijão com arroz bem feito e prazeiroso do que tentar fazer um prato exótico e falhar miseravelmente. Neste ponto, o mérito é totalmente do autor, que consegue fazer uma história que se sustenta pela forma como é narrada, e que mantém o leitor interessado em saber o que vai acontecer a seguir.

Resenhar livros nacionais pode ser uma tarefa complicada, especialmente considerando os diversos fatores que citei no começo. Mas facilita quanto se tem uma obra que merece a divulgação. E, embora não apresente nada de surpreendente ou inédito, Le Chevalier e a Exposição Universal consegue entregar uma aventura redondinha e bem narrada, que mantém a atenção do leitor e demonstra, positivamente, o nível de maturidade para o qual a Literatura Fantástica produzida no Brasil vem caminhando.

Nota: 7,8851

Le Chevalier e a Exposição Universal
De A.Z. Cordenonsi
AVEC Editora
Formato: 23 x 26 cm
192 páginas
Ilustração de capa: Diego Cunha
Preço: R$ 29,90 (impresso)

Algures

Meu nome é Algures e tenho 41 anos (teria se tivesse vivo). Morri aos 13 anos tentando ouvir o Podcast MDM proibidão. Envie esse post para 20 pessoas para que eu possa descansar em paz. Caso não repasse essa mensagem, vou visitar-lhe hoje à noite e você vai se arrepender. Dia 15 de julho, Rafael riu dessa mensagem e 27 anos depois morreu em um acidente de carro. Não quebre esta corrente a não ser que queira sentir minha presença (atrás de você)

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