Numa área alagadiça e isolada as únicas formas de contato com o mundo externo são as barcas e a tevê, transmitindo o culto hardcore – pelo menos para quem deseja esse contato. Doutro lado, um homem bronco se divide entre seus porcos e a companheira, isolada pelo mangue e pela ignorância. Até que chega uma improvável visita: será o Demônio em pele de cordeiro, ou não há pele nenhuma?
No mundo da cultura de massa, existe um trem que é uma faca de dois legumes: a divulgação prévia. Indiscutivelmente necessária para fazer com que uma produção se destaque no imenso mar de lançamentos simultâneos, a divulgação prévia pode gerar aquilo que é, ao mesmo tempo, a melhor e a pior coisa que uma produção pode ter – sim, eu estou falando de expectativas.
Pense no filme do Superman do Brian Singer. Ou nos Guardiões da Galáxia. Excesso de expectativa por um lado e total ausência dela, pelo outro, definiram o fracasso e o sucesso de cada um deles respectivamente. Com isso nasce a máxima: de onde menos se espera, é de lá que não vem porra nenhuma mesmo. Não, não, perdão. A máxima na verdade é: o que fode tudo é a expectativa.
“Lavagem” poderia ter sido um caso destes. Quando a editora Mino anunciou que produziria a adaptação do curtametragem (que eu tive acesso no FIQ de 2013, em breve disponível no site da própria Mino), eu fiquei na pilha. Lavagem, o filme, é um trabalho de força, um soco no estômago: ao juntar neopentecostalismo e pobreza (não só material, pelo contrário), Shiko havia criado uma obra de terror genuinamente brasileira. Como isso ficaria em papel? Seria uma adaptação direta ou uma variação do tema do curta?
A tensão só passou quando o pessoal da Mino me mandou o material de divulgação da história.
Maldito Shiko! Esse safardana conseguiu outra vez!
Já disseram antes de mim, Lavagem, a HQ é um soco na boca. Um cruzado direto, na forma de uma edição crua, sem introdução, sem posfácio, sem texto de apresentação na quarta capa. Nada. Tão isolada do mundo externo quanto seus protagonistas, Lavagem é mostrada só, sem preparações, sem desculpas no final. Só o soco.
Juro, sem cheguismo nenhum, Lavagem é uma baita HQ. A arte realista do velho Shiko já é conhecida desde O azul indiferente do céu ou o safadinho Talvez seja mentira. Aqui ele transpira ainda mais suas influências dos comix americanos misturados ao liquidificador com as escolas mais clássicas de desenho: são hachuras, colagens e um controle do timming incrível. Tudo casa com perfeição: seu “vilão” é excelente, e deixa claro que nenhuma piração técnica ou de narrativa é necessária quando se tem o olhar apurado para ver onde as grandes histórias estão – no absurdo das coisas mais banais.
No fim, Lavagem é aquela HQ que você deve ter sempre à mão pra esfregar na cara do sujeito que te disser que gibi é coisa de criança.
Lavagem, de Shiko. Editora Mino, graphic novel em capa dura, 72 páginas, preto e branco. R$ 44,00.
Nota: 10.