2019 foi um ano e tanto para a relação Brasil-Itália, e não tô falando dos 120 anos da FIAT.
Foi nesse ano que vimos ressurgir, com gás total, diversas publicações da Sergio Bonelli Editore, do país da bota aqui na terra da banana.
Ok, sejamos justos: foram iniciativas silenciosas, que muitos julgam fadadas ao esquecimento, que aqueceram o cenário para isso: foi ainda em 2017 que a (desconhecida) Ed. Lorentz encarou a empreitada de ressuscitar Dylan Dog no país e no fim de 2018 a Editora 85 trouxe de volta Dampyr. As duas iniciativas vieram na lógica do financiamento coletivo, de fã pra fã.
Daí que é meio inevitável pensar que essas iniciativas pioneiras tiveram algum papel no reavido interesse pelos quadrinhos da SBE.
Ainda no ano passado retrasado (2018), a Mythos retomou os títulos mensais de Martin Mystère e Dylan Dog, este (pasmem!) em duas séries. Tanto o Detetive do Impossível quanto o Investigador do Pesadelo não eram publicados pela Mythos no Brasil desde 2006.
Em 2019 esse retorno a italianada se consolidou. Tex ganhou um novo título com o excelente Tex Willer (na verdade, segundo o Guia dos Quadrinhos, foram lançados SEIS novos títulos do ranger em 2019); Dylan Dog se consolidou e Dragonero surgiu de repente. A Panini veio com especiais em grande formato de Deadwood Dick e Mister No.
E já no último trimestre, uma nova edição de Júlia Kendall, a criminóloga, pintou em pré-venda na Amazon. No formato italiano original, papel offset (no lugar do jornal) e recomeçando a numeração – na verdade, uma republicação em formato melhor. Hoje é dela que eu vou falar.
Se você nunca leu Júlia, alguma contextualização acaba sendo necessária. Criada em 1998 por Giancarlo Berardi (o homem por trás do aclamadíssimo Ken Parker) nos roteiros e Luca Vannini na arte, Júlia Kendall é uma HQ policial bem dedicada às convenções do gênero. É protagonizada pela Dra. Júlia Kendall, uma professora universitária de Criminologia que tem a cara e o tipo da atriz Audrey Hepburn. Como num romance policial típico, Júlia não faz parte da lógica institucional de segurança pública: ela não é policial ou membro do judiciário, mas atua como “consultora especial” das forças de justiça criminal.
Estes três primeiros números trazem a estreia e, como não poderia deixar de ser, a apresentação do universo da personagem.
Assim, além de Júlia (que, no background ficamos sabendo que passou maus bocados com um criminoso); conhecemos também o Tenente Webb, principal superior da polícia de Garden City com quem a criminóloga se relaciona (e discute o tempo todo. Já nesses primeiros números fica no ar uma certa tensão sexual entre eles, principalmente da parte de Webb); o Sargento Irving, imediato de Webb, bonachão e divertido, responsável por sempre alfinetar o chefe pela forma como se relaciona com Júlia; Leo Baxter, detetive particular amigo de Júlia e que atua como seus braços e olhos; e Emily Jones, empregada-ama-seca de Júlia. Do outro lado da linha, também temos Drummond, chefão do crime (principalmente a prostituição) que a criminóloga usa como fonte e, claro, Myrna Harrod, a serial killer que se tornará a arqui-inimiga de Júlia. Como é típico no universo bonelliano, os personagens são visualmente inspirados em celebridades. Assim, se Júlia remete à Audrey Hepburn, Webb lembra muito John Malkovich, Irving é claramente John Goodman; Baxter é Nick Nolte e Emily Jones é obviamente Woopi Goldberg. Isso é bem legal, porque muitas vezes dá a sensação de que você meio que já tá lendo a adaptação de um filme ou série, mas é original.
Falando em originalidade, como pincelei acima, as aventuras da Dra. Kendall seguem bastante a cartilha do romance policial clássico, de Conan Doyle e Agatha Christie: um detetive não policial, frágil, insuspeito e de moral inabalável, convocado a auxiliar a polícia quando a instituição não dá conta sozinha dos problemas que enfrenta. A principal divergência da tradição clássica talvez esteja no fato de que Júlia é uma acadêmica da área, funcionando como uma consultora técnica, e não um gênio inato como Hercule Poirot, por exemplo.
Escolhi comentar os três primeiros volumes juntos porque eles compõem uma só história em três partes, com uma trama muito aquém daqueles que o título acabará trazendo em outros momentos (a série regular de J. Kendall, iniciada aqui em 2004, já está na edição #143, sendo que a partir da edição #106 o título dobrou de páginas – passando a integrar duas edições italianas – e com periodicidade bimestral).
Isso porque (principalmente o primeiro número) é muito corrido em termos de solução. Berardi não consegue segurar o suspense durante todo o volume e, na hora de entregar a conclusão, o faz de maneira apressada, um tanto forçada. E pra ajudar, não sei se seguindo à risca a edição original ou por descuido, a Mythos não colocou um “continua” ao final do volume. Eu, que não sabia da ligação entre as três edições, terminei a primeira bem puto com a forma que a trama acabou (pra piorar, a segunda edição tem um sinal de “FIM” e… não é o fim, né?).
Nos dois primeiros números, Júlia é pouco mais do que uma coadjuvante de luxo: a trama se desenrolará quase que independente das ações da doutora, que no máximo comete um erro crasso no primeiro volume (o que é uma jogada inteligente de Berardi, não se pode negar: quem em sã consciência colocaria sua protagonista fracassando já no primeiro número?). Sua presença só produz impacto de verdade no terceiro volume quando… a própria Júlia cai nas garras de Myrna Harrod. Falando nisso, Myrna é outro grande acerto de Berardi (ao menos nesse primeiro arco. Depois as aparições dela começam a ficar bem chatinhas – nesse momento estou lendo a edição regular nº 142 e noooossa ¬¬). A serial killer é também lésbica (o que induz Júlia ao tal erro da primeira edição) e Giancarlo consegue apresentar uma personagem nada estereotipada: inclusive, sua sociopatia é um traço mais explorado, por óbvio, do que a sexualidade. Essa serve para enriquecer e complexificar a personalidade da personagem (descurpa), pra expor em certa medida como confundimos a normalidade (de norma) com a realidade (de real mesmo) e, no aspecto mais óbvio, dar uma nova roupagem para a relação de amor e ódio entre herói e vilão.
Porém, como nem tudo são flores, se Myrna é uma personagem bem construída, me impressionou perceber como Emily Jones, a governanta-ama-seca de Júlia é uma personagem ruim. O que me acendeu a luz de emergência foi o texto de apresentação da edição 2, com uma entrevista que Berardi deu ao relações públicas da Bonelli quando do lançamento da série na Itália. Não é de hoje que ando cabreiro com os aspectos meio racistas das traduções do Júlio Schneider, e aqui há um “já a negra Emily […]” que desceu atravessado. Veja bem: o texto traz “o tenente” Webb, “o sargento” Irving, “o detetive atlético” Leo Baxter e “a negra” Emily. Percebe? “Negra” entra aí como ocupação: “a função de negra” é exercida por Emily, uma mulher negra.
Claro, seria injusto desconsiderar que isso possa ser um vício do texto original. Se for, a responsabilidade do Júlio Schneider (o principal tradutor do italiano no Brasil) diminui um pouco, e aumenta consideravelmente a de Dorival Vitor Lopes, assinalado como responsável pela adaptação do gibi.
Bem, eu sei que sou ranheta, mas nem eu sou militudo a ponto de achar uma personagem ruim por uma mera adjetivação, no mínimo inadequada, num texto de apresentação. Não, longe de mim. Emily não é uma personagem mal apresentada. Emily é uma personagem ruim. Não bastasse ser o alívio cômico do universo da criminóloga, como todo “parceiro mirim” da Bonelli (ok, a Woopi Goldberg é comediante), nesse caso o alívio cômico está assentado no velho (e irritante) estereótipo Tia Nastácia: ela é engraçada porque é negra, praticamente da família, medrosa e apegada a superstições.
Ela não é azeda como o Kit Carson de Tex, ou nonsense como o Groucho em Dylan Dog (até Marvin Brown – Eddie Murphy – do fraco Nick Raider é engraçado porque é um Axel Foley à italiana): Emily tenta fazer graça sendo a velha Mammy/Aunt Jemima dos estadunidenses com uma pegadinha mais modernosa, mais dreads e menos lenço na cabeça. Mas racista pra caralho, mesmo assim.
Nos números mais recentes da série, os aspectos Tia Nastácia de Emily recebem uma atenuada, talvez uma amadurecida, mas longe ainda de serem superados (o que acaba fazendo com que muitos gibis da criminóloga percam o brilho com a aparição da empregada-ama-seca).
Saindo da trama e focando na edição, a versão sob demanda (me parece que só se pode achar essa nova série de Júlia na Amazon, o que permitiu que a edição 5 mantivesse o título “Júlia, aventuras de uma criminóloga”, diferente da versão de 2005, que já era “J. Kendall – Aventuras de Uma Criminóloga”) tem suas vantagens: o papel offset e o formato italiano original (21 x 16cm contra o irritante formatinho Mythos, 17,5X13,5cm) valorizam bastante o material.
Ou melhor, poderiam valorizar, né?
Isso porque a impressão da primeira edição está medonha. Parece que pegaram os mesmos arquivos da edição anterior, já em .jpg, e simplesmente esticaram pra encaixar no formato maior. Os tons de preto estão estourados (a cena do diálogo com Drummond parece o negativo da cena do Arquiteto em Matrix 2), as linhas serrilhadas… Para um produto impresso sob demanda e com esse preço de capa (R$28,90), tá muito, mas muito malcuidado. A edição 2 dá uma melhoradinha (ainda nhé), mas na #3 rola uma estabilizada.
Bem, é isso.
Os três primeiros números de Júlia, aventuras de uma criminóloga são imperdíveis? Não, longe disso. São medianos, bem medianos – ok, eles devem ser melhores do que 70% do que ronda mensalmente as bancas, mas estão longe de serem imperdíveis ou inesquecíveis. Pelo contrário.
Mas valem a promessa do que virá.
Júlia, aventuras de uma criminóloga (formato italiano) 1 a 3. De Giancarlo Berardi (roteiros), Luca Vannini, Corrado Roi e Gustavo Trigo (desenhos, respectivamente). 132 páginas, capa cartonada, formato italiano e papel offset. R$ 28,90 por volume. Editora Mythos.
Nota: 6,5