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A gente lemos: Carnívora

Normalmente, eu não apoio qualquer projeto de quadrinhos no Catarse. Quando se trata de quadrinhos, algo bastante caro (emocionalmente) para mim, eu tento ser o mais objetivo possível no julgamento do que apoiar . Principalmente, tem que ser uma ideia que me chame atenção, que me interesse, que me faça ter vontade de saber mais. Pra mim esse tem que ser o ponto de partida de qualquer história, o que eu chamo de fator “estou ouvindo, conte-me mais”. É claro que uma obra não se sustenta exclusivamente por esse fator, e o resultado final de uma obra pode compensar ou não o interesse inicial, mas até aí isso é inevitável em qualquer situação.

E, pra mim, o mesmo vale para resenha: Não tenho muito interesse em fazer resenhas de obras das quais não gostei de nada. Se faço uma resenha (à exceção de coisas como o filme do Quarteto Fantástico, que resenhei pela curiosidade mórbida alheia), é porque acredito que a obra ainda vale ser divulgada.

Carnívora foi uma das obras às quais contribuí no catarse, por diversos motivos: Primeiro, porque o plot me interessou: Uma espécie de história de terror passada num morro de Favela? To dentro! Fora que, como entusiasta do gênero, gosto de incentivar boas obras que naveguem nestas águas, que eu considero bastante capciosas, em termos de narrativa.

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A HQ one-shot acompanha a história de um grupo de policiais, uma delas recém transferida para uma unidade onde a vida policial não é nada como nos filmes, e um policial (típico de filmes) numa busca obsessiva por sua noiva, desaparecida após um seqüestro no sinistro “Morro da Caveira” (um complexo de favelas fictício), no Rio de Janeiro. Lá, entre bandidos e mocinhos, trabalhadores e vagabundos, tragédias e crenças, há algo que assombra o topo do morro e que ninguém é corajoso o suficiente para chegar até lá.

Se tem uma coisa que talvez tenha “quebrado” meu interesse pela obra durante a leitura foi eu ter pensado que ela era uma de terror. Pelo menos para mim, não pareceu. Tem alguns temas do gênero, mas é basicamente uma história policial com elementos sobrenaturais. Não que tenha algo de intrinsecamente errado com isso (aliás, quando a obra se mantém na ação policial, ela é muito bem sucedida), mas é impossível evitar a decepção da minha parte, pois eu esperava menos ação e um clima mais assustador.

Péricles Junior, que produziu a obra, mostra que a ação é realmente seu habitat natural, pois é na perseguição policial, nos momentos de tensão e nas reviravoltas de roteiro que a história brilha mais. Quanto ele tenta misturar crenças sobrenaturais e gore ao contexto da coisa, no entanto, o resultado é menos impressionante.

Não me entendam mal: é uma HQ muito legal, sem a menor dúvida, e definitivamente vale a leitura. A arte do autor, por exemplo, é fantástica. Mas percebe-se que não são “desenhos de terror” – se é que é possível dizer tal coisa – pois muitas vezes a história falha em criar o clima necessário para que ela pudesse ser considerada “terror”. Mesmo à noite, a história parece “limpinha” demais, clara demais para uma história que possui temas pesados como crianças canibais. Isso sem contar as deslizadas de sexualização desnecessária de personagens femininas (tipo os clássicos closes de bunda que não tem nenhuma função narrativa), que são típicas de HQs mais mainstream, especialmente de heróis. Eu entendo que, sendo desenhista já consolidado no mercado, não faria sentido colocar outro artista à frente do projeto quando se pode fazer tudo sozinho e ter muito mais controle sobre sua obra (eu faria o mesmo), mas seria interessante ver o resultado caso tivesse sido desenhado por outro ilustrador mais versado no gênero.

Quando à história, ela é bem amarradinha em sua maior parte e traz à tona problemas culturais e sociais bem relevantes, sem ser panfletário ou demonizar algum grupo específico, o que por si só já é uma tarefa que merece muitos méritos por sua dificuldade. A relação entre a polícia e o morro é mostrada de forma natural, sem vilanizar os policiais nem dicotomizar os bandidos, e mostrando um morro que, apesar de fictício, guarda paralelos bastante realistas com o Rio de Janeiro real, além de incluir críticas sociais sem que isso tire você da história. Neste caso, Carnívora tem uma vantagem que boa parte das Hqs nacionais não têm: personagens que parecem pessoas reais (psicologicamente) e que, com exceção da história clichê do policial-que-está-em-busca-da-noiva-desaparecida, têm motivações bem verossímeis.

Por boa parte da história, parecemos acompanhar duas tramas paralelas: a aventura dos policiais tentando lidar com suas vidas e a criminalidade na favela, e as misteriosas mortes que ocorrem no topo do morro, que dão a tônica sobrenatural da trama. Mas, quando as duas tramas fatalmente se encontram, o resultado é truncado e parece que o elemento sobrenatural está “invadindo” o mundo real sem pedir licença, algo que, se bem explorado, poderia ser uma ótima alegoria e incrementaria a narrativa, mas que nesse caso torna o clímax um pouco fragmentado demais, como o clímax de um filme blockbuster que tem que resolver diversos elementos da trama que não combinam em pouco tempo.

Ainda assim, se você tirar de Carnívora o rótulo de “Hq de terror” e pensar nela como um “policial sobrenatural” antes de ler, certamente você aproveitará muito mais a história, que num geral está muito bem contada e possui personagens interessantes e que poderiam continuar por novas aventuras tranquilamente. Então esqueça meu mimimi sobre “não ser uma HQ de terror” (você é melhor do que isso, eu sei), e corra atrás de Carnívora se você está interessado numa boa HQ policial brasileira que não foge dos problemas do mundo real, mas tem sua boa dose de catarse sobrenatural.

Nota: 7,461

Algures

Meu nome é Algures e tenho 41 anos (teria se tivesse vivo). Morri aos 13 anos tentando ouvir o Podcast MDM proibidão. Envie esse post para 20 pessoas para que eu possa descansar em paz. Caso não repasse essa mensagem, vou visitar-lhe hoje à noite e você vai se arrepender. Dia 15 de julho, Rafael riu dessa mensagem e 27 anos depois morreu em um acidente de carro. Não quebre esta corrente a não ser que queira sentir minha presença (atrás de você)

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