A gente lemos: Aos cuidados de Rafaela

Lembrando que nem só o Chance é que erra, descubro que a melhor HQ que eu li ano passado não ganhou resenha. Como pude?

Como disse, Aos Cuidados de Rafaela foi lançado em junho de 2014 com recursos do Proac de São Paulo. Com roteiros de Marcelo Saravá e arte de Marco Oliveira (talvez mais conhecido por seu excelente Overdose Homeopática – que também virou álbum), a graphic novel conta a história de Nicolas e sua velha mãe, a ex-vedete e cantora Aurelita Soares, uma senhora idosa e senil.

A trama começa quando Nicolas, que vive sozinho com a mãe debilitada, precisa contratar uma cuidadora para ela. Entretanto, a idade e a demência deixaram Aurélia intragável: ela esbraveja, maltrata e desconfia de tudo e de todos, afinal de contas sua vida e seu legado estão supostamente sendo vigiados por bandoleiros e aves de rapina à espera de um único deslize.

É então que surge Rafaela. Uma candidata a cuidadora de 20 anos de idade e com o shape da Sasha Grey, segundo o Dr. Cabral, amigo de Nicolas. Uma moça tão bonita quanto velhaca (no sentido correto, não no nosso) que consegue inverter a lógica: diferente das outras cuidadoras, ela conquista Dona Aurélia e perturba profundamente Nicolas. A relação doentia que se estabelece só piora quando Aurélia enfim morre, e seu filho já não pode permitir que Rafaela se vá.

Marcelo Saravá constrói uma trama soberba, a qual tem Nelson Rodrigues como a referência mais óbvia (tá na contracapa), mas que também me lembra Vladimir Nabokov em Lolita. Rafaela é perversa, fica evidente desde sua primeira aparição, e domina o jogo da sensualidade com uma competência que Nicolas nunca terá. O final da trama, duplamente perturbador, traz o único arremate possível.

Surpreendente também é uso que Marco Oliveira faz de seu estilo mezzo cartunesco mezzo grafitti. Quem está acostumado com seu trabalho no Overdose, pode estranhar sua presença numa história dessa densidade, mas podem confiar em mim: é com maestria que seu traço casa com o ar permanentemente sacana da trama.

É possível que alguém reclame do tipo de mulher que Rafaela representa – a sempre presente representação da mulher como encarnação da perdição através do sexo, mas acho que seria superficial demais fazê-lo aqui. Primeiro, porque Nicolas não é, de partida, um exemplo de caráter: na verdade, nenhum dos personagens, talvez à exceção da quase invisível Elvira, a faxineira, e Tânia, a irmã de Nicolas, é santo. Todos são canalhas em diferentes níveis, e Rafaela é somente a perversa mais competente. Mesmo assim, ao final da trama, parecem genuínos sua culpa e desejo de redenção. E isso é legal no álbum: é definitivamente uma trama de “a vida como ela é”, onde não há mocinhos, bandidos ou donzelas. Só ratos.

Enfim, chega desse blábláblá: Aos cuidados de Rafaela é uma HQ e tanto. Se você gosta do Nelson Rodrigues style bem executado, se não gosta, se quer só ler algo com (alguma) pegada nua-pelada-pornor, mesmo assim assim o gibi é pra você. É quadrinho de primeiríssima qualidade.

 

Aos cuidados de Rafaela, de Marcelo Saravá (roteiros) e Marco Oliveira (arte). Editora Zarabatana. 144 páginas, R$46,00 reais.

 

Nota: 10 

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