Quando os caras do Pipoca & Nanquim, pessoas hiper legais e apaixonadas pelas histórias em quadrinhos, decidiram se tornar uma editora de HQs (e livros também), a chance de que vinha coisa boa por aí era grande.
Ao contrário do que se esperava, os caras não começaram devagar, muito pelo contrário: ao trazerem Esteban Maroto e Wally Wood para o cenário nacional, nossos chégas demonstraram logo de cara ao que vieram – primeiro, trazer autores que, apesar de seu grande reconhecimento, não tinham história sólida de publicação no país e, segundo, apresentar materiais inusitados e de grande qualidade. É o caso de A arte de Charlie Chan Hock Chye, de Sonny Liew.
Sonny é um quadrinista de Singapura (mas nascido na Malásia), e aí a gente já começa se perguntando quantos quadrinhos de Singapura você já leu na sua vida? Até onde sei, A arte de Charlie Chan Hock Chye é o primeiro. E como tal, não poderia começar melhor, já que a graphic novel é a narrativa da história de vida do fictício quadrinista Charlie Chan Hock Chye, com o intuito de contar a história de Singapura, dos movimentos de independência nos anos 1950 até quase o presente.
“Nascido” em 1938 (o ano em que o Superman abalou o mundo), Charlie Chan era o filho mais jovem de uma família dos donos de um pequeno mercadinho de secos e molhados. Com um talento inato para o desenho, e uma verdadeira fixação pelas histórias em quadrinhos, Chan usa de sua habilidade para, na forma de quadrinhos dos mais variados estilos e influências, contar a conturbada história política de Singapura, desde o período como colônia britânica, passando pelos esforços de união com outras nações da península Malaia até a solidificação da República de Singapura.
A arte de Charlie Chan Hock Chye é algo realmente surpreendente. Seja pelo inusitado de sua origem, seja pela forma sui generis com a qual seu autor decide lançar mão para contar a história do país. Sendo Charlie Chan um apaixonado pelas histórias em quadrinhos mundiais, Sonny Liew vai apresentando a produção do fictício Chan ao correr dos anos, sempre em paralelo à conturbada vida política do país. Assim, no início vemos a produção de Chan fortemente calcada no estilo de Osamu Tezuka (é de arrepiar uma das páginas de abertura, na qual Chan diz que: “No princípio, havia Tezuka”, evocando o texto de abertura do Evangelho de João) e depois, paulatinamente, emular um estilo famoso (como Wally Wood, Eisner ou Carl Barks), seja para demonstrar a versatilidade de “Chan”, quanto para assinalar com mais clareza o passar do tempo.
A verdade é que, apesar do álbum supostamente estar interessado na carreira de Charlie Chan Hock Chye, as páginas de rosto do livro (com entrevistas curtas ao ex-primeiro ministro Lee Kuan Yew e o ex-revolucionário Lim Chin Siong) já deixam mais do que claro que toda aquela fábula sobre um talentosíssimo e esquecido quadrinista só tem um objetivo: demonstrar a montanha-russa de sonhos, expectativas, frustrações e novos sonhos de um cidadão comum (mas de olhar mais atento) diante de todo o processo de construção da República de Singapura. Ou seja: o quadrinista Charlie Chan nada mais é do que um bode expiatório para se falar sobre a história do país.
Liew é sagaz ao traduzir toda a incerteza e frustrações na forma de quadrinhos, esboços e percepções de uma testemunha ocular da história. Lendo cada uma das produções “de” Charlie Chan, o que vemos é o desejo evidente de uma vida melhor, uma apreensão crítica de cada movimento, de cada expectativa vivida pelo povo singapurano.
O ponto alto do álbum é, sem sombra de dúvidas, a montagem da edição. Sonny Liew reúne de maneira extremamente habilidosa o que seriam esboços, histórias não publicadas, fotografias e pinturas de Charlie Chan Hock Chye. A sensação é de se ter em mãos, de fato, um documentário na forma de quadrinhos, mais ou menos como Art Spiegelman fizera em Maus. A grande diferença é que, apesar de toda a verossimilhança do material, de sua organização extremamente orgânica nas páginas do álbum, A arte de Charlie Chan Hock Chye ainda é um mocumentário (mockumentary) sobre uma situação histórica muito real.
[ABRINDO UMAS ASPAS] Lançado em 2011, Ovelha Negra: a revista que o Brasil não leu, dos nossos chégas Ricardo Tokumoto (o Ryot) e Daniel Werneck também é um mocumentário sobre uma revista belorizontina de contra-cultura publicada entre os anos 1950 e 1970. Os autores usam os mesmos recursos que Sonny Liew lançará mão em seu “A arte de Charlie Chan…”: desenhos lançados e não lançados, produzidos sob a influência dos mais diversos artistas do mainstream (ou não) dos quadrinhos mundiais, documentos “recuperados”, depoimentos e congêneres para recontar a história de uma revista de quadrinhos que… nunca existiu. Por algum motivo misterioso, “Ovelha Negra: a revista que o Brasil não leu” é um material excelente que, numa ironia triste, acabou pouco lido e conhecido no metiê dos leitores de HQ no país (sim, o fato de ser uma produção independente certamente tem sua influência).
[FECHA AS ASPAS]
Pra finalizar, é importante deixar claro que A arte de Charlie Chan Hock Chye é uma graphic novel excelente. A qualidade artística de Sonny Liew, seja no aspecto estilístico (é um desbunde sua capacidade de imitar não só o estilo de artistas consagrados, mas também sua narrativa), seja no design do álbum – simulando papéis velhos, técnicas, materiais… É incrível, um verdadeiro desbunde. Se há algum pecado para apontar na edição (aposto que o Daniel Lopes vai ficar puto comigo), eu assinalaria as notas no fim do álbum. Elas são ricas e extremamente interessantes, principalmente quando lembramos que se trata de um país bastante desconhecido dos brasileiros. O grande problema é que não há, nas páginas da HQ, qualquer sinalização indicando ao leitor que existem notas sobre aquela página. Assim, o leitor acaba tendo duas opções: ou consulta as notas a cada página, para saber se há algo a acrescentar; ou lê as notas todas de uma vez, seja durante a leitura, seja antes ou depois dela. Apesar disso, naturalmente essa crítica não é capaz de tirar o brilho deste belo álbum.
A arte de Charlie Chan Hock Chye, de Sonny Liew. Editora Pipoca & Nanquim, 320 páginas, 2018, R$ 69,90 (paguei R$ 48,90 numa promocha da Amazon).
Nota: 9/10