Tudo conectado, só que não: expectativa e realidade nos universos compartilhados

Arte original

Quando Nick Fury apareceu na cena pós créditos do primeiro Homem de Ferro, insinuando que outros heróis poderiam se juntar ao personagem numa espécie de supergrupo, os fãs de quadrinhos ficaram em polvorosa, enquanto que os espectadores “civis” mal sabiam o que aquilo significava. É claro que crossovers não eram nenhuma novidade naquela época, mas o que a Marvel Studios construiu a partir dali (ou seja, um universo metanarrativo onde todos os filmes não só coexistem como os eventos num filme afetam o outro) foi algo sem precedentes nesta escala. E não só no sentido cinematográfico, mas no sentido de negócios também.

Tanto o MCU era algo inédito que nem todo mundo entre os executivos da Marvel morria de amores pela ideia. E nem os outros estúdios estavam tão ansiosos assim para pular de cabeça na ideia. Mais ou menos na época do filme do Lanterna Verde, Geoff (Djéof) Johns falou em entrevista que não enxergava os personagens da DC sendo adaptados para o cinema num universo compartilhado como o da Marvel. Para outros estúdios que não tinham super heróis clássicos (e até para os que tinham, como a FOX), este tipo de iniciativa soava como um pesadelo logístico que eles não estavam interessados em abraçar.

Mas depois do sucesso absurdo de Os Vingadores, uma franquia construída a partir de outras franquias, os espectadores já haviam se acostumado à ideia de filmes e personagens coexistindo num mesmo universo e afetando um ao outro. Mais do que isso: a Marvel Studios havia basicamente virado o jogo, e buscar criar seus próprios universos compartilhados passou a ser a regra para outros estúdios (tanto que hoje, além do universo DC na Warner, há intenção de universos compartilhados com Transformers e os Monstros da Universal, apenas para citar alguns). E, se a Marvel havia conseguido tanto sucesso com uma jogada tão mercadologicamente arriscada, o que mais poderia vir depois? Entra em cena Agents of SHIELD.

Criada e com produção do próprio Joss Whedon, diretor de Os Vingadores, Marvel’s Agents of SHIELD trazia o agente Coulson de volta à vida depois de sua morte nas mãos de Loki (spoiler?) liderando um time de agentes para lidar com ameaças fora do comum. Independente da qualidade da série, a ideia ao menos prometia, especialmente porque a grande sacada do estúdio era alegar que a série se passava no mesmo universo dos filmes, o que era outra coisa sem precedentes (já tínhamos visto séries e filmes se cruzarem antes, mas nunca numa série acontecendo concomitantemente aos filmes e sendo influenciada em “tempo real” por cada filme do estúdio lançado), especialmente considerando o timming completamente diferente da produção de uma série em comparação com filmes (que são preparados com anos de antecedência da data de lançamento).

O primeiro sinal de que isso seria mais difícil do que parecia foi a estreia de Capitão América: O Soldado Invernal, que acabou com o que se conhecia por “SHIELD”. Como a série, cuja premissa girava em torno da agência, iria sobreviver? O incidente levou a uma considerável melhoria na qualidade da série, mas mesmo com participações de personagens menores dos filmes (Maria Hill, Lady Sif) e até de um peso pesado como Nick Fury a série foi, aos poucos, se distanciando cada vez mais do universo das telonas, especialmente quando os filmes falhavam em reconhecer a existência do programa em geral e da situação do agente Coulson em particular (lembrando que a morte do personagem foi o que uniu a equipe no primeiro Vingadores).

Com Vingadores: A Era de Ultron mais uma vez se recusando a reconhecer os eventos de Agents of SHIELD (mesmo a série criando episódios ao redor do filme, tentando manter a coesão dos universos) e com a introdução dos Inumanos no programa, começou a ficar cada vez mais clara a distância que separava cinema e TV, distância essa que foi reforçada quando Ike Perlmutter passou a responder apenas pela divisão de TV enquanto que Kevin Feige ficou com as chaves da divisão cinematográfica. E, como aparentemente os dois não se bicam, a treta corporativa passara para o criativo, e a bagunça estava formada.

Mas antes o problema fosse apenas entre cinema e TV (porque, convenhamos, a grande maioria das pessoas que vê os filmes não assiste à série): Recentemente, durante a San Diego Comic Con, quando perguntado sobre que personagens ele gostaria de cruzar caminhos, Clark Gregg (o agente Coulson), respondeu:

“Como era minhas hqs favoritas quando adolescente, adoraria dizer Daniel Rand, Punho de Ferro, mas de repente há um campo de força invisível gigantesco chamado ‘coisas corporativas’. A não ser, quem sabe, talvez a gente desenvolva uma arma que romperá isso, e consiga me levar para o Netflix por um minuto. Eu adoraria isso, adoraria. Mas se essa barreira cair, então deus sabe que eu quero bater um papo com Luke Cage. Depois de ter visto aquele trailer…Com certeza, Colter é o cara.”

Ou seja, mesmo Jeph Loeb sendo o chefe criativo da divisão de TV (que inclui Agents of SHIELD e as séries do Netflix) e respondendo ao Ike Pearlmutter (que, presumivelmente, também chefia ambos), as séries de canal aberto e de streaming são vistos como “universos compactos” separados um do outro. O que é bizarríssimo, não só pelo fato de ser, basicamente, a mesma casa, mas pelo fato de que as séries do Netflix também tem como principal argumento de “venda” o fato de se passarem dentro do MCU (ou seja, o universo dos filmes). Estas séries vão ainda mais longe que Agents of SHIELD, nunca mencionando os personagens diretamente (não espere ouvir eles usando o nome “Capitão América) e sendo totalmente vagos quanto a incidentes que afetam todo o “mundo” do MCU (como a batalha de Nova York do primeiro Vingadores).

Estas mudanças corporativas que aconteceram nos bastidores podem não ter apenas acentuado a distância entre cinema e TV, mas também alterado os próprios planos dos filmes da Marvel. Recentemente o estúdio anunciou que o filme dos Inumanos, que estava agendado para 2019 desde o anúncio dos filmes da fase 3 (em 2014), foi tirado do cronograma e não tem mais previsão de estreia. Isso poderia ser apenas mais uma das diversas mudanças que o estúdio fez em seu cronograma (que mudou quando a parceria com a Sony para o novo filme do Homem Aranha foi anunciado e quando do anúncio da sequência de Homem Formiga) mas, diferente das outras alterações, que apenas empurraram os filmes para datas diferentes (mas que ainda continuavam com previsão de estreia), Inumanos foi sumariamente deixado sem uma data de estreia.

De acordo com Kevin Feige, a decisão é apenas temporária e um filme dos Inumanos saírá mais cedo ou mais tarde. Mas o fato dessa mudança ocorrer quando Agents of SHIELD esta explorando a mitologia dos Inumanos de forma cada vez mais intensa nos leva ao inevitável questionamento de se isso não acabou “matando” o filme de alguma maneira, talvez devido às tretas corporativas entre Perlmutter e Feige.

No fim das contas, ter chegado atrasada na festa pode ser uma coisa boa para a Warner. Se tem um ponto positivo em só recentemente o estúdio ter decidido criar um universo compartilhado da DC é ter tido a oportunidade de ver o que funcionou e o que não funcionou na estratégia do concorrente. Tanto é que, desde o começo os produtores deixaram bem claro que TV e cinema, apesar de serem superficialmente vistos como parte de um “multiverso”, são universos diferentes e que não devem se cruzar (mesmo que os fãs anseiem por um crossover a lá Crise Nas Infinitas Terras). É claro que isso também acaba gerando situações estranhas como dois Flashs diferentes acontecendo paralelamente um ao outro, o que pode vir a ser um problema no futuro, ou como personagens sendo imediatamente limados das séries porque filmes com eles foram anunciados (como personagens do Esquadrão Suicida). Ou seja, ambas as estratégias acabam tendo seus prós e seus contras.

Mas do que tudo isso importa para o espectador? Na teoria, nada. Mas, na prática, tudo. Com exceção dos nerds fanboys e dos obsessivos (como eu), os espectadores só querem ir para o cinema, assistir TV ou acessar o Netflix para ver uma boa história, independente se elas estão conectadas a uma narrativa maior ou não. O problema é que o funcionamento interno dos estúdios afeta diretamente a saúde e o desempenho destas histórias (ou o roteiro é alterado, ou atores são cortados, ou personagens são proibidos, etc) e, se não houver uma comunicação eficiente entre as partes – e, principalmente, o respeito para com os consumidores como prioridade -, o resultado sempre será uma colcha de retalhos, quer seja por culpa do universo compartilhado, quer seja pela falta dele.

O universo DC no cinema ainda está em sua infância, e só o tempo dirá se as decisões tomadas pela Warner se provarão, a longo prazo, mais eficientes. Já a Marvel, 10 anos à frente no jogo*, começa a sentir os efeitos da pretensão de querer manter tudo como um único universo coeso. Mas vai ser interessante acompanhar o que vai acontecer a seguir com os dois estúdios. Na melhor das hipóteses, tudo fica bem no final. Na pior…

 

——-
*estou considerando apenas o “jogo” do universo compartilhado no estilo que temos visto hoje, claro.

Sair da versão mobile