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[A gente (re)lemos] De Neil Gaiman: Lugar Nenhum, de Mike Carey e Glenn Fabry


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Não lembro qual foi a última vez q fiz isso mas, mobilizado por uma conversa casual no serviço, peguei uma HQ pra reler. Foi Lugar Nenhum, do Mike Carey e do Glenn Fabry, baseado no romance homônimo do Neil Gaiman (que era uma série de Tv da BBC que flopou, no vernáculo jovem).

 

Mas, antes disso, vamos a uma importante questão: não sou um grande fã do Gaiman romancista. Acho Deuses americanos péssimo (sim, péssimo) e, por isso, outros livros dele nessa toada (Os filhos de Anansi, Mitologia Nórdica, etc), eu nem considerei a possibilidade de ler. Mas Lugar Nenhum eu li. E curti.

(na época comprei o Deuses… e Lugar Nenhum numa edição econômica da Conrad, mileano, num pacote dois por um). E, de cara, nunca entendi porque o projeto de série não foi pra frente (quer dizer, depois eu entendi. Mais pra frente eu explico), porque a história é muito boa!

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Richard Mayhew é um jovem adulto na Londres dos anos 1990, que é um verdadeiro exemplo do sujeito irrelevante. Um qualquer no serviço, um capacho da noiva, um bunda mole completo. Até o dia em que ele acode uma moça ferida no meio da rua, com a maior pinta de drogada. Pronto, muda tudo (ou não).

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A moça é Lady Porta, última da linhagem dos Pórtico. Toda a sua família foi assassinada e ela está fugindo dos assassinos. Mas Lady Porta, os Pórtico e os assassinos (os senhores Vandemar e Croup) pertencem todos à… Londres Abaixo. A cidade paralela e invisível que existe literalmente em baixo da Londres… Acima, é que é uma espécie de repositório de tudo o que foi esquecido da Londres do nosso mundo: de tradições a personagens, passando por estações de metrô, cortes e capelas.

Mas o lance é o seguinte: ao socorrer Lady Porta, Rick Mayhew se meteu num buraco (o trocadilho é intencional) que não fazia ideia. Não só por atravessar o caminho de Vandemar e Croup, mas também porque, tendo sido tocado por Porta e pela Londres Abaixo, Mayhew foi “apagado” da Londres Acima. Ele se tornou invisível a todos os londrinos “normais”: o colega de trabalho sabidão, a chefe, a ex-noiva… ninguém mais o vê ou ouve. Só os mendigos que, como ele, são também invisíveis.

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O mundo de Lugar Nenhum é uma parada muito interessante. Nada é muito claro — quais são os feudos e quem os governa? Como se tornaram seus governantes? Se tudo o que há na Londres Abaixo veio, de alguma forma, da Londres Acima, por que o Marquês de Carabás é absolutamente preto (ou Anaesthesia é azul, os Pórtico são brancos)? Ele tem alguma coisa a ver com o Marques de Carabás d’O Gato de Botas? E isso, claro, não me refiro a perguntas que a trama não responde — e são um punhadinho também — mas por aquelas que deixam um gostinho de quero mais.

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Já tem uns bons anos que li o romance original, então não saberia dizer a qualidade da adaptação, como adaptação: mas posso dizer que, como história em quadrinhos, Lugar Nenhum, do Mike Carey, é uma boa leitura. Carey, acostumado a remexer as gavetas do Sr. Gaiman — foi ele o responsável por expandir o Lúcifer de Sandman — o roteirista faz um bom trabalho, com uma trama bem conduzida e soluções bem pensadas, como é o caso do Mayhew narrador.

O mesmo não pode ser dito da arte do Glenn Fabry. Mais conhecido por seu trabalho como capista (são dele as capas de Preacher, por exemplo), Lugar Nenhum permite afirmar, com tranquilidade, que demonstra que como quadrinista ele é um ótimo… capista. Tentei puxar pela memória outras HQs desenhadas por ele que eu tivesse lido, e só cheguei a Thor: Vikings, do Garth Ennis, uma história que eu achei tão síndrome de Peppa Pig que nem cheguei a botar reparo na arte. Mas aqui não tem jeito: Fabry não tem regularidade com as proporções dos personagens (a depender da cena, Vandemar, apesar de corpulento, é coisa de uma cabeça, uma cabeça e meia maior do que Croup. Mas em algumas cenas, eles parecem Schwarzenegger e DeVitto em “Gêmeos”, ou os irmãos Toguro do anime de Yu Yu Hakushô) com a manutenção de objetos e elementos em cena (das duas uma: ou a casaca do Marquês é feita do mesmo tecido do Gato Félix, ou o amuleto da Besta-Fera de Londres foi feito pela Corporação Cápsula…); os personagens têm expressões faciais incondizentes com o que está acontecendo; há sequências “quebradas”, em que a continuidade da ação fica truncada… enfim.

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Afinal de contas: qual a diferença de altura entre Croup e Vandemar?

Acho a arte de Fabry aqui fraca (inclusive, é difícil saber se aquelas questões que coloquei acima, como mistérios interessantes — as cores dos personagens, por exemplo — são decisão dele ou não. Como o preto absoluto de Carabás — procure pelas interwebs: fanarts, a série de Tv, o áudio-drama e até a edição ilustrada do livro com as bençãos de Gaiman, trazem um Carabás… Negro. No sentido afrodescendente mesmo).

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O Padre Ábade (Abbot no original): Quer ir de Palpatine a Ben Kingsley em poucas páginas? Pergunte-me como! (sim, as três imagens são o mesmo personagem)

Também tem outra coisa sobre a arte do Fabry que me incomoda: ele claramente bebeu algumas caracterizações direto na série de Tv. É evidente (literalmente) que seu Richard Mayhew foi inspirado na lata do Gary Bakewell, autor que encarnou o personagem na BBC. A própria Lady Porta herda uns traços de Laura Fraser, especialmente o cabelo: Fabry desenha a personagem com um bizarro cabelo meio Sabotage, que não combina em nada com a estética dos Pórtico (que são meio vitorianos), mas que parece uma adaptação ruim do penteado de Fraser na série (que tem uns fios soltos, meio espetados).

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Tem também alguns problemas que não sei dizer de quem é a responsa: podem estar já no texto original do Gaiman ou numa derrapada da adaptação de Carey. Por exemplo, se Lady Porta não tivesse fugido da chacina, como o vilão executaria seu plano? Se o dom dos Pórtico, como “abridores”, é abrir portas que levam a diferentes lugares, e se um abridor pode escolher onde a porta vai levar… por que se desenvolve a maior parte da trama? Lady Porta não pode simplesmente abrir portas para onde precisa ir? E a última: se só os abridores tem esse poder de abrir portas, como Croup e Vandemar se deslocam tão rápido por Londres Abaixo (essa pode ser uma questão da dupla Carey/Fabry: de repente o lapso temporal da história é maior, e os dois não souberam transmitir essa passagem)?

Claro, pra solucionar isso, só pegando o romance pra reler. Acho que vale, mas não por agora. De qualquer forma, a julgar pela memória que tenho do livro, rolou aqui minha teoria nº1 para adaptações: se você, como eu, não consegue simplesmente abraçar a diferença (o livro é uma coisa, o quadrinho é outra e coisa e tal) e fica fazendo comparações (isso é melhor no livro, isso é melhor na série), é sempre uma boa apostar primeiro na adaptação e depois no original. Minha experiência mostra que, nessa ordem, você caminha em direção à mais detalhes e desenvolvimentos, e não menos. Afinal, se você lê o livro e na sequência vai ver uma adaptação, certamente vai ficar sentindo falta de alguma coisa que, obviamente, terá de ser cortada na adaptação.

De Neil Gaiman: Lugar Nenhum, de Mike Carey (roteiro) e Glenn Fabry (arte), baseados no romance de Neil Gaiman. Editora Panini, 224 páginas, fevereiro de 2018, R$ 67,00 (preço de capa na época. Ô saudade)

Nota: 8,5/10


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E falando de adaptação… gastei umas boas horas nesta manhã de Quarta-Feira de Cinzas procurando os seis episódios da série da BBC (que é de 1996) pra assistir. Acabei caindo num piratinha lá no Youtibiu, e assisti o piloto e… nossa. Não me admira que tenha sido cancelada tão rápido. A coisa toda tem um ar de novela da Record + Propaganda da MTv no começo + Teatrinho da Tia Maricotinha que é um tanto constrangedor.

Claro, tem a incidência do estilo (e das limitações) de época. Não sei se vendo em 1996 teria sido tão ruim assim — na real, acho bem que não, o moleque que eu fui (que curtia cada tranqueira) tinha grandes chances de se divertir. Mesmo com aqueles closes bizarros e takes breguíssimos cheios de sombras e silhuetas.

Ainda teria a vantagem de ter um “Ramírez” (do Highlander) negão, na forma do Marquês de Carabás. Teria sido legal.

 

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