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A gente lemos: Henshin! Mangá Vol. 1, da JBC

Admito: a cena mangazística brasileira não é a minha praia. É público e notório o meu interesse pela produção de quadrinhos nacionais, mas ela não chega até os mangás da terra. Eu até acompanho uma coisa ou outra (como a produção do Lobo Limão) mas em geral nossa produção nesse sentido me cheira sempre muito estereotipada e sem identidade própria ainda.
Portanto, eu não fazia nem ideia de que rolou um prêmio Brazil Manga Awards no final do ano passado, com o objetivo de selecionar histórias originais, de 24 a 32 páginas, produzidas no Brasil. O Henshin! Mangá #1 traz então os cinco melhores colocados, publicados em formato de antologia, com comentários da banca de jurados: Cassius Medauar, nosso chégas e editor da JBC; Fábio Yabu (Combo Rangers); Arnaldo Oka (ex-chefe de tradução da JBC) e Sônia B. Luyten, uma das maiores especialistas acadêmicas em mangá do país.

Os finalistas foram (em ordem de publicação na revista) Quack, de Kaji Pato; Crishno: o escolhido, do nosso chégas Lielson Zeni e arte de Francis Ortolan; (Re)Fabula, de Nameru Hitsuji; Entre Monstros e Deuses, de Pedro Leonelli e Dharilya; e o grande vencedor, Starmind, de Toppera e do parça Ricardo Tokumoto, o Ryot.

Bem, antologias são sempre muito complicadas. Sobretudo porque o caráter fragmentado da publicação tende a ser profundamente oscilante em termos de qualidade, mas não é isso que se deveria esperar aqui, sobretudo se lembrarmos que se trata dos cinco melhores trabalhos apresentados no concurso, o que se espera é que eles estejam mais ou menos nivelados. Da mesma forma, por ser o resultado de um concurso de tema livre, talvez se esperasse uma maior diversificação de temas.

Pois bem, não é o que acontece em nenhuma das duas questões. Em termos de qualidade, a publicação é bem dividida: temos duas histórias beeem fracas, uma mediana, uma boa e uma excelente, esta muito distante das demais. Não a toa, venceu o concurso. Quanto ao tema, é quase decepcionante se perceber uma prevalência do humor (três das cinco HQs, incluindo a vencedora, Starmind).

Com um estilo bastante devotado (tanto na temática quanto no estilo gráfico) a Akira Toriyama (de Dragon Ball, mas principalmente de Dr. Slump) Kaji Pato e sua Quack abrem mal a revista. A história é chata, com um humorzinho non sense e sem graça. Nada rola de novidade e a entrada da escatologia só reitera a sensação de que você está lendo algo que talvez fosse engraçado quando você tinha dez anos de idade – ou estava em plena década de 90 (o que dá no mesmo).

Em seguida, Lielson Zeni e Francis Ortolan trazem Crishno: o escolhido, outra HQ de humor (acho). Provavelmente em razão de já estar irritado pela leitura de Quack, não dei conta de ler tudo. O desenho é fraco, ainda muito amador, e já nas primeiras páginas nosso parça Lielson já aponta o uso irritante de um velho recurso: o passarinho que acompanha a trama mas a analisa de fora, como se fosse um leitor, e comenta isso com o próprio leitor de maneira crítica/sarcástica.

A história seguinte, (Re) Fabula, de Nameru Hitsuji, traz algum respiro. Na verdade, Nameru é uma dupla de autores (tipo o Muto Ashirogi de Bakuman), e contam a luta entre os animais numa nova “corrida do horóscopo”. Se na corrida original o Rato entrou no zodíaco chinês após trapacear o Gato, o felino agora quer vingança. Os animais se enfrentam em formas humanas, numa luta que lembra um bocado as doideiras de um Yu Yu Hakushô da vida. Entretanto (sempre tem um entretanto), algumas soluções são apressadas e pouco claras – é realmente difícil entender o que está acontecendo (como por exemplo no golpe do Rato à página 90). Agora, o que me deixou buzina com a HQ mesmo foi aquele maldito Tubarão num rio! POMBAS! Não era melhor ter usado um Jacaré ou Crocodilo?

Entre Monstros e Deuses, de Pedro Leonelli e Dharilya (a única autora dentre os finalistas), traz um alento e tanto em relação ao que foi visto até ali. Os autores se propõem a contar uma história de amor, religiosidade e arte ambientada num mundo com muitos pontos em comum com o nosso. Primeiro, se destaca a solidez e a personalidade do traço do Pedro (Dharilya também desenha, mas pelo que deu pra sacar nas páginas de Facebook de ambos, é o estilo dele que predomina), o que se tem é algo realmente bonito de se ver. A história em si é simples, tem algumas soluções muito apressadas (como o interesse dos dois protagonistas e as consequências do surgimento da Deusa), mas não chega a comprometer – é uma one-shot para um concurso, é preciso se conformar que o melhor possível de se obter é a mera inspiração (e não uma reinterpretação completa) da pegada shakespeariana. Pra mim, o maior problema da HQ são as onomatopéias, que destoam bastante do estilo geral. De qualquer forma, é um material legal, que me instigou a querer ver mais coisas da dupla.

Pra fechar, Toppera e Ryot nos trazem Starmind, uma HQ de humor diferente de tudo o que se viu no álbum e, ao mesmo tempo, perfeitamente sintonizada com o humor que tem sido feito contemporaneamente, um humor mais anárquico do que non sense, que tem referências naquela produção que vem de Animaniacs e Freakazoid, passa pelos Cartoon Cartoons do Cartoon Network, pelas produções da Nickelodeon e vem desembocar em Gumball e Apenas um Show. A trama narra a  história de Artie, o menino burrinho que pede a uma estrela cadente que o faça inteligente, e acaba se transformando em Starmind, o herói capaz de fazer as pessoas pensarem na base do cacete. A HQ tem um ritmo e tanto, e uma identidade visual que remete ao próprio trabalho do Ryot e seus mil estilos (que não desenha a HQ), a HQ alterna escolas de traço, passando do cartoon ao clássico rebuscado a fim de reforçar o timming de algumas cenas. Falando nisso, o traço do Toppera é sensacional, de um profissionalismo fino. Se Entre Monstros e Deuses deu vontade de ler mais materiais com o traço do Pedro Leonelli, Starmind faz com que você queira ler mais HQs do bizarro personagem. O prêmio de melhor HQ do concurso é mais do que merecido.

Editorialmente, acho que a publicação tem alguns problemas. Por exemplo, o texto da Sônia Luyten, avaliando todos os trabalhos de uma só vez (as demais avaliações dos jurados vão sendo apresentadas ao final de cada história) acaba sendo meio repetitivo e, com os resumos que ela faz das histórias, redundante. Talvez doesse menos se viesse logo na abertura da publicação. Noutro ponto, eu vi gente por aí (Breno Barroso, eu escolho você!) reclamando das gongadas de Arnaldo Oka, que sentou a madeira em TODAS as HQs do álbum. A mim não incomodou, porque muitas vezes eu concordei com ele (exceto em Starmind e Entre Monstros e Deuses. Nessa última, o texto dele ficou meio sem sentido para o leitor “de fora”) e no final fiquei com a sensação que nenhum trabalho conseguiu surpreendê-lo de verdade, e ele acabou tendo de escolher aqueles que considerou os cinco menos piores – ou que pelo menos estes cinco não eram os que ele achou melhores, mas acabou sendo voto vencido. Chega a ser engraçada a disparidade extrema entre as opiniões (e o tom delas) emitidas por ele e pelo Cassius Medauar, que tende a ser mais empolgado e condescendente com os materiais.

Pra fechar, como iniciativa o prêmio Brazil Manga Awards é um lance e tanto no sentido de fomentar a produção nacional – ainda que num estilo gráfico em particular. Se em termos gerais o resultado não é espetacular, sempre entra em questão o lance da “notificação”: será que os nossos autores de mangá ainda não são bons o suficiente ou aqueles que o são simplesmente não deram moral pro concurso? No mais, é preciso ver a iniciativa como o que ela é, ou seja, um projeto ainda em desenvolvimento. Mas a perspectiva, para as próximas edições (o Brazil Manga Awards 2015 deve abrir inscrições em breve) é que a coisa toda melhore, vá se lapidando. Veremos.

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