Da Janela do Quarto dos Fundos… #1


Sobre Franz Kafka e Peter Kuper
Saudações, meus caros anônimos amigos. O demônio mais querido de vocês me pediu para inaugurar a coluna falando alguma coisa sobre a adaptação de A Metamorfose, do tcheco de origem alemã Franz Kafka, por um artista norte-americano e bastante talentoso chamado Peter Kuper. Então, eis-me aqui, como uma boa maldição do Hell (auahauhauahauahua).
metamorfose-2606114, 1719835, 1669149960, 20221122204600, 22, 11, 2022

Falando um pouco mais sério, a verdade é que com os quadrinhos e demais publicações custando os olhos da cara, o fígado, o baço e mais os rins, é sempre uma ótima pedida saber como gastar bem o seu dinheiro, com algo que, além de diversão, lhe traga qualquer coisa a mais.
Seguindo essa idéia é que recomendo que você junte uns trocados e dê um jeito de ler um dos mais belos exercícios literários de que se tem notícia no último século no Ocidente.
Nesta “pequena obra-prima”, nas palavras de Modesto Carone – reconhecidamente o melhor tradutor do mestre tcheco/alemão para o português brasileiro –, o jovem, atormentado e talentoso Kafka trata sem a mínima piedade não só o protagonista Gregor Samsa, mas também sua irmã, sua mãe, o pai tirano (clichê necessário: figura que perpassa toda obra kafkiana), o chefe, o emprego e tudo o mais que pudesse fazer parte do meio social no qual, desde o começo, vemos o pobre personagem ser enredado.

Fazendo uma sinopse safada o suficiente pra combinar com o conceito do site, dá pra resumir bem rapidamente toda a trama: um caixeiro viajante – obrigado a essa condição por causa do repentino desemprego do pai – tem uma noite de pesadelos terríveis (tratada por Kafka com a ambigüidade que iria construir sua fama décadas mais tarde). Quando acorda, ao invés de receber pão, leite, jornal e paz, Gregor Samsa faz uma descoberta ainda pior: era melhor ter continuado dormindo, pois agora suas pernas tinham sido triplicadas, sua pele havia adquirido um tom marrom envernizado e a dificuldade para manter o lençol sobre sua agora abalroada barriga não deixavam dúvidas — o corpo que um dia abrigou a alma de Gregor não mais existia. Em seu lugar havia sobrado a horrenda forma de um inseto repugnante. Os percalços de toda sorte implicados na mera tentativa de seguir sua nova vida em um corpo anti-natural e a degradação inevitável de sua sanidade (ou adaptação da mente ao corpo, dependendo do ponto de vista de quem analisa) são o objeto de todo o restante da novela.
E é a partir daqui que desfaço as confusões acerca do que está sendo analisado. O excelente texto usado pelo escritor para moer o que ainda restava de Gregor Samsa naquele corpo completamente estranho não só a todos à sua volta, mas também a si mesmo – no que poderia muito bem se tornar uma piada bastante inteligente sobre a atual obsessão ocidental pelas aparências – foi reforçado pela também excelente arte de Peter Kuper.

Mostrando que fez bem a lição de casa, Kuper derrama talento no traço e conhecimento sobre o cotidiano da época em que o escritor viveu. Isso foi uma sacada genial, pois Kafka não descreve em que período histórico se passa a novela. Logo, a escolha de Kuper pela estética ainda underground por aquele tempo mas já em voga no norte e leste da Europa desde o fim do império austro-húngaro, especialmente na Alemanha, onde foi batizada como “expressionismo”, faz chegar à inevitável conclusão de que o norte-americano conseguiu dar vida própria e criar imagens a contento a um escritor que se fez notar exatamente por descrever de forma sucinta todos os ambientes, como contraponto à descrição em minúcias do estado psíquico dos personagens, obrigando o leitor a ter o direito de imaginar somente o espaço, nunca o que vai na alma do personagem, já que isso é descrito de maneira precisa, seca, rígida.
Como bom consumidor e artista de quadrinhos, Kuper foi ainda mais longe, pois faz saltar aos olhos algumas coisas que são muito ditas por críticos e literatos em geral mas que passam despercebidas a parte considerável dos chamados “leitores comuns”. A comicidade e o humor negro angustiante (se é que existe isso, se é que isso não é redundância) são só duas delas. Para conhecer ou mesmo debater os demais, recomendo que você, meu caro anônimo amigo, leia ambos os livros. Pois estamos num site e eu já infringi pelo menos 60% de todos os manuais para redação jornalística online.

Encerrando, pra quem ainda não sabe ou não se lembra, Peter Kuper criou e desenha até hoje a World War 3 Illustrated e os personagens Spy vs Spy, publicados mensalmente na norte-americana MAD, além de ilustrações periódicas em alguns dos maiores jornais dos EUA. E Kafka? Bem, digite Franz Kafka no Google, meu filho, deixe de preguiça e descubra um dos principais culpados por existir nossa amada nona arte hoje em dia. Caso se interesse, recomendo que comece o mergulho na cosmogonia kafkiana por Um Mèdico Rural.
Na próxima coluna (se tudo der certo, óbvio) vou falar de um livro-gibi do Laerte, Histórias Repentinas, de 2004. Até lá!
Rodivaldo Ribeiro é radialista, jornalista e escritor sem computador…
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